terça-feira, março 27, 2012

Filosofia - Tertúlia sobre José Marinho

O DIÁRIO DE FELGUEIRAS (DF) considera oportuno reproduzir aqui uma das partes mais importantes de uma tertúlia de filosofia recentemente realizada entre três figuras de A Renascença Portuguesa, cada um pertencente à sua geração deste movimento e cuja temática foi: "Já será tempo de conversar sobre José Marinho?"


Tertúlia em Miraflores, Janeiro de 2012.
Participaram no diálogo Luis Furtado (LF), João Seabra Botelho (JSB) e Francisco Moraes Sarmento (FMS).



Já será tempo de conversar sobre José Marinho?

Num inverno invulgarmente soalheiro, a tarde aprazível convida a um passeio. Alguém interrompe o silêncio:

JSB – Meu caros, terminou há dias o ano em que se completou o cinquentenário da publicação da Teoria do Ser e da Verdade. Uma vez que as vozes institucionais já fizeram as homenagens que tinham a fazer, o Marinho está outra vez disponível para conversar connosco...

FMS – Não esteve disponível porque estava ocupado a participar nas homenagens, ou porque andava a fugir delas?
(risos)

LF – Bem, então eu faço a pergunta que ele nos fazia, quando chegava à tertúlia: “Temos conversa?”

FMS – Temos, sempre!... Tenho andado a ler S. Tomás de Aquino e, por estranho que pareça, fui parar a Marinho. Hoje, estou em dizer que o conceito de insubstancial substante é um conceito inspirado por Aquino. E tomando em atenção as teses de Aquino, acabei por concluir que José Marinho é Aristotélico.

LF – Em que sentido?

FMS – Bem, é a leitura de Aquino que me permite entender o insubstancial substante sem decair nas muitas leituras que, infelizmente, andam por aí, e que tentam empurrar Marinho para uma tradição céptica e nihilista.

LF – Para mim, o conceito de insubstancial substante resulta de uma equivocidade que está no próprio fundamento do pensamento humano. O acto de pensar nunca se cansa de si mesmo, porque o pensamento sempre se recria, principalmente quando tem sobre sua égide a própria mente divina. O insubstancial substante, portanto, em todos os momentos morre, e em todos os momentos renasce de si-mesmo. No renascer está precisamente a sua substancialidade, afirmada no pensamento, já que este nunca se contradiz a si-mesmo como realidade, como essência de si.
Mas eis agora a perspectiva do homem, que é a perspectiva de J. Marinho. Marinho é um homem de perplexidades, que se vê perante a alta missão do seu pensamento, que reconhece o alto grau que esse mesmo pensamento pede para a reflexão sobre si-próprio. E esse pensamento, na pureza de si-mesmo, porque está alto, porque deseja contemplar a verdade e o ser da verdade, apenas encontra como reflexo a própria natureza humana. E o que é que lhe diz a natureza humana? Diz-lhe que o infinito ser sempre se nega - nega-se em todas as substâncias criadas; mas também persiste, porque permanece sempre como poder de afirmação.

FSM – Pois o que me surpreendeu, foi a dissolução do equivoco... A expressão insubstancial substante, que aparenta ser intrinsecamente equívoca, segundo uma interpretação aristotélica de S- Tomás, deixa de o ser. Perceberá isto quem se lembrar dos argumentos de S.Tomás que concicliam a tese da eternidade do mundo e a existência de Deus Criador.

LF - Bem, quanto a mim há, realmente, uma equivocidade! No entanto, é certo que, no insubstancial, sempre a preposição apela ao substante... O substante é o fundamento, que o pensamento continua indefinidamente a procurar, porque o pensamento não tem posssibilidade de se contrariar, mesmo na negação, pois até na negação se reconhece, quanto mais não seja como fundamento de si-mesmo.

FMS - Isso é pedagógico...

LF -  Não, não é apenas isso. O ser tem de negar-se para se afirmar.

FMS – A negação não é necessária à afirmação do ser. A negação é sempre provisória...

JSB – Creio que essa seria a tese de Álvaro, e nisso discordaram os dois Amigos. A tese de José Marinho, quanto a mim, não é essa. Em Marinho, a cisão é irrefragável! Não há humana afirmação de ser que dela, cisão, seja imaculada; o não-ser, não sendo o que é, como que assiste o que é, a ser. Eis o enigma fundamental que, segundo Marinho, move todo o filosofar.

LF – Sim, e Marinho teve a virtude de levar toda a problemática da filosofia, da filosofia em geral e não apenas portuguesa, para este tema axial. E poucos o entendem. E embora seja um autor de relevância mundial, é intraduzível; a sua escrita é inevitavelmente hermética, não suporta tradução. Há uma cisão extrema, e a cisão extrema explica necessáriamente um eleatismo de tipo metafísico. Nós temos a nossa velocidade própria de pensamento, potencialmente infinita, e viajamos dentro de nós por mundos infinitos, dentro dos quais nos sentimos concêntricos, como se fôssemos senhores mas , bem no fundo, estamos a alargar as nossas cavernas, ou seja, os nossos possíveis céus.
No contexto da Terra, alargamos os nossos horizontes. E por isso as viagens dos homens adquirem vários significados, porque o homem pode navegar infinitamente, através de vários mundos. A cisão extrema, para Marinho, é pressupor que, no fim de tudo, na grande finalização teleológica da História dos Mundos e do Ser em relação a esses Mundos, mais uma vez, perante o infinito inesgotável, o que o homem pode conceber, ou a realidade que o homem pode usufruir, é sempre separada. A cisão extrema fala-nos, e impõe-nos, autoritáriamente, que há sempre algo finito que para nós serve, mas, no fundo, que está perante o infinito inconcluido. A cisão extrema é para além dos homens e das circunstâncias que os envolvem na sua própria evolução.
Sob o ponto de vista antropológico, partindo do princípio que há um fim teleológico do homem nesta dimensão espacio-temporal, há sempre uma cisão extrema, porque Deus, como diria Pessoa, é sempre para além da ogiva, o grande ser acima de tudo, acima de todos os anseios, acima de todas as nossas especulações – e ainda bem! Sem isso, a nossa existência na Terra poderia ser programada por etapas, poderia ser mais ou menos definida e orientada, e não haveria algo, para além de tudo, perante o qual nós sentíssemos que o mistério da existência tivesse solução possível.

FSM – A autognose é concêntrica? Na autognose o homem não se conhece apenas a si mesmo... Na autognose conhecemo-nos a nós, e a todo o Mundo!!!Não há, por isso, redenção do mundo sem salvação do Homem, por muito que isso custe aos ecologistas e aos amigos dos animais da nossa praça! E, já agora, eu diria que só temos cisão na Criação... Perante a eternidade do mundo, o que é a cisão? Aliás, para mim a cisão é uma noção teológica, embora todos andem a tratá-la como se fosse uma noção antropológica.

JSB - Caro Francisco, parece-me que quererá dizer que o Mundo é perpétuo, não eterno. A eternidade, como sabe, está fora do tempo e da sucessão dos momentos, e o Mundo não o está, certamente... A tese de Aquino, creio, é a da perpetuidade. Quanto à cisão extrema, como lhe chama Marinho, ela é apresentada quase como se fosse um atributo divino; mas se Marinho não carece da inteligência que permite aos homens não limitar ou antropoformizar o Divino, ao dizer que a cisão seja em Deus, terá de dizer que essa cisão é para nós, e não para Ele; e é por ela ser para nós, que a autognose de cada um não poderá abarcar nem uma só gota do que está para além de cada um; no entanto, não haverá nenhum limite ao que a graça Divina queira dar a conhecer a cada um... Mas isso, já será sófico e misterioso, está, julgo, para lá da autognose enquanto tal...

LF - A autognose é sempre concêntrica em nós. E excêntrica em relação a Deus. É a graça que ultrapassa os Mundos e as dimensões que temos como referências relativamente ao nosso espaço e ao nosso tempo. Pensamos que o milagre não existe... Pensamos até, embora não acreditemos, que é impossível uma comunicação, mas o beneficio da graça é algo que nós recebemos para além de todo o espaço e de todo o tempo. Isto foi uma das heranças que recebi, não só das leituras de Leonardo Coimbra, com também da mestria do Álvaro Ribeiro. A gnose, repito, como algo do conhecimento que nos é dado, e que para nós serve como semente de evolução e como ascensão para a nossa possível realização interna, é algo que em nós se opera, em nós se confirma, em nós se dilata, abrangendo, por si-mesma, tudo o resto, que no fundo é a realidade, realidade essa a que chamamos mundo. Não tenhamos o receio de sermos mónadas!

FMS  – Se eu fosse a ave metafisica do Sant'Ana Dionísio diria que na autognose todo o homem se sente divino.

JSB – E esses momentos, como talvez Marinho lembrasse agora, não são, na autognose, o entusiamo que caminha sempre a par e passo com o lamento de Cristo”Pai, Pai, porque me abandonaste”? Nenhuma monada subsiste apenas da sua harmonia interna!Mas talvez, quem sabe, essa harmonia seja já em si suficiente para fazer voar a ave metafísica...

LF -Porque é que a mónada é a configuração? Por que razão nos aparece como o ser infinito de Parménides, o ser concluso para o qual transferimos contradições, interrogações... O que interessa nas mónadas, na sua sua conclusividade que parece negar o infinito, não é a contradição do infinito. O infinito, para o ser humano é como um imenso oceano de reserva a partir do qual todas as finitudes se dispoêm nas suas múltiplas correspondências e nas suas especiais simpatias. Mundos diferentes sim, mas conclusos na sua harmonia, sabendo nós que essa harmonia faz parte dessa outra harmonia geral que é aquela que nos movimenta o espírito e que ao mesmo tempo faz com que tudo o que pensamos possa ser concebido. Verdadeiramente, não há conceitos singulares que por esta génese não sejam universais. E que por esta luz interna, fogo activo, não se torne propriedade comum universal de tudo o que é o nosso conceber. Os conceitos a priori serão sintéticos? Nós pensamos que todos os conceitos serão gerados em nós porque fazemos parte da universal geração de tudo o que é o nosso conceber. Presumo que não é nas ciências evolucionistas que está a geração de toda as coisas. Nem estas ciências tem ainda a atitude firme de receberem em seu seio aquilo que é o movimento evolucionista do mundo! Mas há no espírito humano como que um polo de referenciação que vai distinguir aquilo que é o nosso conceber. Neste caso, concebemos pelo espírito. Por isso mesmo concebemos para as ideias e isto sustenta em nós uma perspectiva abençoada e possivelmente transcendente de todos os mundos que possamos conceber.