quinta-feira, fevereiro 23, 2012

Helena Osório: É possível um José Afonso para a infância?


Entre o possível e o improvável




 Helena Osório
(Escritora de literatura infanto-juvenil)


É possível um José Afonso para a infância? Diria que sim, mesmo não representando a sua obra quase nada para as novas gerações.
Os poemas de Zeca Afonso não são propriamente dirigidos a crianças nem se estudam nas escolas, mas podiam muito bem ser. São curtos, simples, sugestivos, coloridos. E algumas músicas parecem-me indicadas para os mais jovens: Canção de Embalar, Verdes São os Campos, Milho Verde, Mar Alto.
Os meus filhos têm uma avó de coração que lhes cantava a Canção de Embalar de Zeca Afonso e Mãe Negra de Paulo de Carvalho, para adormecerem. Confesso ser mais uma mulher do bel canto, pelo que lhes cantava a Avé Maria de Schubert ou Belle Nuit de Offenbach. As crianças precisam de todas estas vozes, versos e emoções que as enriquecem desde o berço.
Por curiosidade, José Afonso era o nome de meu avô materno, cujas origens remotas também se aproximam de Aveiro. Ainda ostento no apelido o Afonso de Azevedo desse ramo. Eventualmente, estaremos ligados ao nome familiar de Zeca Afonso e à aventura que parece circular no sangue da família – a qual levou pais e irmãos a Angola e Moçambique, como eles e como nós que vivemos em Angola desde o tempo dos bisavós pouco depois da I Guerra Mundial.
Contudo, por questões políticas, José Afonso (meu avô), não me deixava cantarolar, em criança, as canções de Zeca Afonso (cantor e compositor de Aveiro), que tão bem entravam no ouvido. Nós, crianças, cantávamo-las no recreio da escola e a caminho de casa, sem sabermos se eram comunistas ou fascistas, só porque soavam bem. Mas, o tempo, depressa as esqueceu.
Chegou, se calhar, agora, o tempo de as estudarmos melhor e de recuperarmos algumas menos ouvidas como Galinhas do Mato que data de 1985. Eu já não a cantarolei, mas é uma maravilha interpretada por crianças, até porque nos reserva o fascínio do ritmo africano que, para mim, faz parte de um longe perto da infância vivida em Angola. Tal como a infância de Zeca Afonso, em África, recordada aqui na idade madura com todo o enriquecimento de uma vida e sem podermos esquecer que o mesmo Zeca Afonso nunca deixou de ser, afinal, um professor de todos nós apesar de morrer só.
Recordo assim, neste espaço, a Canção de Embalar, para que se leiam bem as palavras, sem a música; e para que se (re)encontre a verdadeira beleza destes versos tão claros e puros; e ainda para que outros professores olhem para eles e os cultivem no ensino; finalmente, para que se adormeça no encantamento:

Dorme meu menino a estrela d'alva 
Já a procurei e não a vi 
Se ela não vier de madrugada 
Outra que eu souber será pra ti ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô (bis) 
Outra que eu souber na noite escura 
Sobre o teu sorriso de encantar 
Ouvirás cantando nas alturas 
Trovas e cantigas de embalar 
Trovas e cantigas muito belas 
Afina a garganta meu cantor 
Quando a luz se apaga nas janelas 
Perde a estrela d'alva o seu fulgor 
Perde a estrela d'alva pequenina 
Se outra não vier para a render 
Dorme quinda à noite é uma menina 
Deixa-a vir também adormecer.