quinta-feira, fevereiro 23, 2012

Amélia Vieira: "há uma estranha santidade neste homem!"


Amélia Vieira
(poeta)

José Afonso.

Falar deste homem não é um assunto tão fácil como a uma primeira abordagem parece. É alguém de absolutamente incontornável na música portuguesa, não tanto pela quimera da intervenção, mas sim, e mais, pela forma invocatória de lauto sagrado e ladainha que percorre a sua voz de alto a baixo como se de uma memória se tratasse. Como homem também tinha a aura de uma certa intocabilidade. Feito de severo silêncio, e de uma doçura imperceptível, mas doce, havia nele a intransigência dos religiosos e a síntese de um homem que compõe oráculos.
Sempre amei a sua integridade. É uma emanação lavada, enxuta, limpa. Isso dá brilho às imagens, ao fluxo da mensagem que fazemos delas. E, quando a voz se lhe juntava na garganta era ainda esse espírito algo indomável que percorria o salão da nossa alma e a purificava também.
Há uma estranha santidade neste homem! Sempre que o oiço os meus níveis de tensão voltam a ser harmoniosos. Os animais param, gostam….parecem escutá-lo. Não estou focada nas vozes, nos agudos, nos graves…mas toda a dimensão de jogral ,de marinheiro, de pescadores de Barcas Belas …me enfeitiça e me comove. Luta pelo bem, dá recados aos mais pobres, denuncia a usura, quebra o esqueleto do já feito. É fraterno como um franciscano.
Sempre, em cada Natal, oiço o seu Natal dos Pobres, as Janeiras, e a Canção de Embalar. Nós acreditamos nesse percurso de Rei Mago. Há nele a estrela D ´Álva que nunca perdeu fulgor.
Como arquétipo ele é mais que um cantor, interprete, ele é um pouco de nós como civilização, fazendo a retenção poética de um dom, que a vida dá, tão arbitrariamente, quanto expele lava. Lembro-me bem, desse momento da sua morte, exactamente porque coincidiu com a de meu avô. Foram assim, lágrimas que se misturaram numa pena sentida de um ciclo de homens que ali encerrava. Os meus guardiões tinham partido sem que alguma vez pensasse no quanto e a que ponto os seus exemplos me iriam servir de guia. Parece que há homens que nascem para estrelas. Seguram a nossa vida sempre pela mão e nada vive mais que as suas lembranças. Não sei se eles teriam resistido à hecatombe da perda de colectivo, dessa arte imensa herdade das primeiras aldeias que vivendo longe se agrupavam em canto e oração, em falas, em ciclos, em invocações. Não seriam certamente capazes. Neles havia ainda o culto de uma certa intransigência.
Hoje, por vezes, oiço-o, com a gravidade de quem tem de ter espaço para um culto, uma prece… dou-o a ouvir aos jovens que já nada reconhecem desta fonte, dado que o caudal dela há muito que morreu, não insiste, respeito…são coisas…! Talvez volte com força estranha um dia quando menos se espere.
Os mantras são formas de despertar a alma do seu adormecimento…de inundar os diques parados… eu nunca renunciei ao seu chamamento e sigo caminhos longos ao som da paz do seu canto. Tudo aquilo é tão inteligente. É a magia do bem!
Passaram-se vinte e cinco anos, que singularmente são Bodas de Prata. A prata de um casamento que a morte não apaga. Núpcias eternas…Vou ouvi-lo… estou a ouvi-lo, e mais uma vez todas as lágrimas se misturam….Um canto chão também será lembrado.
Quando se faz o levantamento da música portuguesa, origens e locais, eles estão por todo o lado. O Adriano Correia de Oliveira está nas cantigas de Maio, O José Afonso mais nos esponsais, é tão bonito…cheiram a feno, a papoilas, a trigo… sentem-se sinos, bebe-se leite, prova-se o mel, come-se o pão numa terra ainda povoada de coisas que são bálsamo. Nunca os dissocio desta faina, deste saber filosófico, desta dádiva ao grupo. São Mestres, são também artífices, cantam e dão-nos as seivas, andarilhos, são aqueles empregados sazonais. Não raro os vejo como uma réplica de Tobias andando com o seu cão atrás, numa viagem de cidade em cidade. Aquela viagem em que aparece o Arcanjo Rafael. São imagens assim que tenho deles…nunca conseguirei dissociá-los deste idílicos seres.
As pessoas geralmente não sabem porque gostam. Gostam e pronto. Mas a complexidade de algo de que se gosta é muito grande. Assim ele. Ele é um grande caminho espalhado no A.D.N do nosso sangue colectivo. Amamo-lo, porque obedece a um cânone cultural profundo. E assim, o tempo passa, mas guardando o seu recado.
Quase a chegar aos mil, quero agora pedir a luz dos ciclos finais e tentar dizer que foi uma honra ter nascido na sua contemporaneidade. O nosso ser obedece, e é tudo o que ouvimos e escutamos, as mudanças guiadas pelos hinos, as canções de ordem e as de embalar. Não seria eu, se pensasse agora separada do meu canto interior que ele mesmo cantou para que não me perdesse nesta vida tão descaracterizada.
Quero pensar que de tempos a tempos há correctores de memória que aparecem no mundo a cantar, porque sempre haverá outros que aparecerão aos tiros, e matando-o….a “pele” da vida é um memorando. Creio que fazer um hino é muito menos importante que juntar todas as luas e canta-las nas suas quatro parcelas. Elas vão cheias de vocábulos e são novas ciclicamente. Aprendi a amar esta intemporalidade e custa-me festejar efemérides, mas elas serão sempre precisas para lembrar a cada um de nós o contorno da nossa própria efemeridade face a este que não para pra nós, jamais de cantar.
Normalmente as pessoas que nascem em Agosto, morrem em Fevereiro. Se forem mesmo de Agosto, augustas e nobres como é o caso. O relógio da vida soube fazer nelas coisas muito boas. No essencial estavam certos. Vou ouvi-lo, vou lembrá-lo no sossego da minha alma, porque não quero agora juntar-me ao coro. O momento é de Cântico Negro. Não é profecia.
Ele era mais um Cisne Branco! E o canto, o canto torna-se divino no último instante…deslizando serena na espuma das águas.

Amélia Vieira

21 de Fevereiro de 2012