sábado, janeiro 22, 2011

A “Dulcineia” de Henrique Galvão faz hoje 50 anos



Texto de
José Carlos Pereira


Seria bom que Portugal tivesse memória…

Há cinquenta anos o país estava suspenso do desfecho daquele que ficou para a História como o gesto mais grandioso e o acto revolucionário mais espectacular de sempre, no plano da resistência ao Estado Novo. Trata-se do assalto e sequestro do paquete Santa Maria, que foi chefiado  pelo capitão Henrique Galvão e que tinha em vista  derrubar ao regime de Salazar. Embora não tenha atingido o objectivo, a acção de Galvão deu início o processo de desmoronamento do regime consolidado na Constituição de 1933.
Nada voltou a ser como era.

Baptizada pelo próprio capitão Galvão por “Operação Dulcineia”, a tomada do Santa Maria (na altura, o mais luxuoso, moderno e rápido navio português), deu-se na noite de 21 para 22 de Janeiro de 1961, no mar das Caraíbas, e teve grande impacto noticioso em todo o mundo.

Galvão idealizou um plano para depor Salazar, partindo da Venezuela. Em Caracas reuniu apoios e montou a operação, que teve de adiar várias vezes, na esperança de recrutar um mínimo de 100 homens e juntar mais dinheiro e armas. Um revolucionário aderente até fez um empréstimo com juros a 15%; outro vendeu o táxi, entre outros episódios que hoje nos parecem caricatos Acabou por lançar a operação com um grupo de 25, mas um não embarcou. Eram todos membros do Directório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL), uma aliança de exilados políticos portugueses e espanhóis, que pretendiam depor as ditaduras da Península Ibérica, lideradas por Franco e Salazar.

Galvão embarcou em Curaçao, nas Antilhas holandesas, munido de passaporte venezuelano. Os seus companheiros de aventura embarcaram no dia anterior, em La Guaira, na Venezuela.
No navio, os 24 rebeldes, mais espanhóis que portugueses, misturaram-se com as cerca de mil pessoas que seguiam a bordo (612 passageiros e mais 370 tripulantes), fazendo passar a ideia de que eram quase 100. E todos acreditaram! O sequestro durou 12 dias e terminou com a entrega do paquete às autoridades brasileiras, que decidiram não extraditar os rebeldes.



 

Henrique Galvão tinha sido um “delfim” de Salazar, a quem ajudou a subir ao Poder. A experiência de África, onde Salazar o colocou como administrador colonial, esteve na origem da dissidência. O seu relatório crítico não agradou ao presidente do Conselho, que ignorando todas as recomendações do inspector, meteu o relatório na gaveta. Foi como se Galvão perdesse a inocência: passou a olhar para Salazar com outros olhos e  a ver Portugal como ele era, tomando consciência da repressão à liberdade de acção política e de pensamento criador, do analfabetismo (70%) e da miséria - três chagas que eram o todo da realidade nacional. 

A conversão a crítico do regime e de Salazar custou-lhe a liberdade, pois o ditador não quis saber da velha amizade e mandou prendê-lo. Julgado e condenado, encurtou a pena, fugindo ao fim de quase oito anos. No presídio tornou-se um inimigo ainda mais feroz do Estado Novo, de que é prova a “Carta Aberta a Salazar”, que divulgou em panfletos. Quando se evadiu do Hospital Santa Maria foi para protagonizar um acto de verdadeira coragem.

A operação encabeçada pelo capitão dissidente não terá apanhado Salazar propriamente de surpresa. Um dia, o ditador terá desabafado: "Henrique Galvão é muito mais perigoso do que Humberto Delgado”.

Salazar, como se sabe, tinha uma visão ruralista da sociedade, com base num catolicismo muito conservador e uma visão feudal, anterior à Revolução Francesa. Enquanto Franco, apesar de ditador e até sanguinário, apostou no desenvolvimento tecnológico e na industrialização do seu país, tornando-o na quinta potência automóvel do mundo.

Como é que foi vista a acção de Galvão nos areópagos internacionais? Com complacência.

Nos EUA, Kennedy tomara posse no dia anterior; no Brasil, Kubishek, aliado de Salazar, estava de saída, cedendo o poder a Jânio Quadros, que era amigo de Galvão e não gostava de Salazar nem do seu regime. Mais a Leste, Kruschev mostrava ao mundo uma visão liberalizadora para o regime soviético - uma Peresyroka prematura que lhe custou a expulsão do poder pelo próprio Comité Central do PCUS, que o acusou de desvio ideológico. Galvão, inteligente e sagaz como era, terá levado em conta todas estas circunstâncias e, jogando com os contrastes da conjuntura geopolítica mundial do momento, tentou tirar proveito disso para provocar a queda do Estado Novo, em Portugal. Fê-lo, assumindo-se como partidário da acção directa, ou seja, tentando o derrube do regime pelas armas, envolvendo grupos armados aliados a militares dissidentes.

Enquanto isso, o PCP defendia a mudança de regime, mas pela via exclusivamente militar, o que, de facto, veio a acontecer em 1974. Por outro lado, Galvão era crítico do ideal comunista e, ao contrário de Humberto Delgado, nunca fez alianças com a organização comunista, nem na luta contra o Estado Novo. Católico confesso, perfilhava a ideia de um país politicamente ocidental. Mesmo assim, muitos dos rebeldes que recrutou para o assalto ao paquete vieram a ingressar em movimentos de extrema-esquerda.

Depois do desfecho da "Operação Dulcineia", Galvão ainda liderou o assalto a um avião da TAP em Casablanca, avião esse que sobrevoou Lisboa, lançando 100 mil panfletos de incitamento à revolução a partir de Angola.


Portanto, como se viu, não estavam criadas as condições para o derrube da ditadura. Mas Galvão não era louco. Pelo contrário! Como militar, era muito cerebral e, ao mesmo tempo, romântico – um revolucionário que não se importava de “emprestar” a própria vida ao seu ideal de democracia.

Se o sequestro do paquete Santa Maria tivesse ocorrido nos EUA, em França ou na Inglaterra, escritores e cineastas de todo o mundo já teriam feito incontáveis livros e filmes sobre esta história, tal como fizeram em relação ao Titanic. E conquanto o capitão fosse a figura mais odiada do regime – ainda mais do que o assassinado Delgado –, justificar-se-ia contar esta história aos mais novos, não por idolatria a uma personagem da História, mas para explicar o quanto são difíceis os caminhos para a Liberdade dos povos, independentemente das diferenças quanto à forma de se concretizar o objectivo.

A morte (que dizem ter sido acidental) do segundo piloto, Nascimento Costa, durante a acção do sequestro, serviu a Salazar para fazer propaganda junto da população contra o homem que foi a referência do caso Santa Maria. O povo português, fechado num país em que o tempo existia como águas paradas, uniu-se em torno do ditador. A Igreja, a propósito do "Santa Maria", emitiu um comunicado de apoio ao regime.

O coração tem que ceder à razão. É tempo de transcendermos as fronteiras ideológicas e respeitar a História: Galvão não era um mero aventureiro. O caso “Santa Maria”, se não teve o êxito desejado quanto aos seus objectivos imediatos, foi o mote para luta pela independência das colónias e criou divisões no interior do regime (veja-se, por exemplo, a tentativa de golpe do ministro Botelho Moniz), que acabou por cair. A História é um longo percurso que não se realiza apenas nas metas, ou seja, nas datas gloriosas de libertação.

Henrique Galvão, militar, escritor e dramaturgo, era natural do Barreiro; faleceu no exílio, em S. Paulo, em 1970, um mês antes de Salazar. Ironia do destino!


Peça de teatro de Alice Rios relata o "Santa Maria"



 
Sobre este acontecimento histórico, que merece chegar ao conhecimento do público mais jovem, a produção artística e literária é muito escassa, quase inexistente e nem sempre: um documentário, da galega Margarida Ledo, um filme, de Francisco Manzo, e um livro,  de mais recentemente, um livro, onde onde um jornalista portugues relata a operação em detalhe. E é tudo o que veio a público.

Tivemos, entretanto, acesso a um texto dramático que nos parece o trabalho mais completo e interessante sobre a proeza do capitão Galvão. Trata-se de um trabalho com que a conhecida jornalista (trabalhou no Jornal de Notícias) e escritora Alice Rios participou na segunda edição do Prémio Nacional de Teatro Bernardo Santareno, há quatro anos. Intitulada “A Dulcineia de Henrique Galvão” esta peça de teatro é um trabalho exaustivo, que apresenta dados verdadeiros intercalados, como é óbvio, com partes ficcionadas, que nos mostram vida cá dentro do país, durante aqueles 12 dias que o navio esteve no mar.

Uma editora já demonstrou interesse em publicar a obra e dois conhecidos encenadores portugueses já se debruçaram sobre este trabalho tão completo. A escritora teve o azar (ou nós, seus leitores o tivemos) de não ver o trabalho levado ao palco por motivo de restrições económicas, consubstanciadas nos cortes dos apoios estatais à Cultura. 

A nosso ver, mesmo assim, sendo este um trabalho raro, mais exaustivo do que outros já publicados sobre o “Santa Maria”, seria benéfico para a preservação da memória colectiva que alguém “pegasse” na obra e a desse a conhecer ao público em geral. Tanto em livro como em palco.

É um apelo que aqui deixamos, nomeadamente aos mecenas culturais.