domingo, outubro 15, 2006

As últimas notas de Anna Politkovskaia

Texto e foto do semanário "Expresso", de ontem.
Títulos e legenda da responsabilidade do Diário de Felgueiras

Anna Politkovskaia, jornalista, foi assassinada
pelo poder instuído na Rússia.

"O ódio deles mete-me medo!"

Todos os dias me chegam dezenas de dossiês. São cópias dos materiais que fazem parte dos processos criminais de pessoas que estão presas na Rússia sob a acusação de "terrorismo" ou em fase de investigação.


Perguntam-me: por que pôs a palavra "terrorismo" entre aspas? Porque a esmagadora maioria destas pessoas são terroristas nomeados. Este ano, a prática de "nomeação de terroristas" não só substituiu a verdadeira luta contra o terrorismo, como se impôs como formação de elementos ansiosos de vingança, ou seja, potenciais terroristas.


Quando o Ministério Público e os Tribunais trabalham, não para fazerem cumprir as leis e castigar os culpados, mas para cumprirem a encomenda política e as estatísticas da luta antiterrorista que agradam ao Kremlin, as causas criminais são de fácil fabricação.


A linha de fabricação de "confissões sinceras" assegura na perfeição boas estatísticas da luta contra o "terrorismo" no Norte do Cáucaso. Aqui está o que me escreveu um grupo de mães tchetchenas de jovens condenados: "Pela sua essência, tais reformatórios converteram-se em campos de concentração para condenados tchetchenos, vítimas de discriminação nacional, que permanecem em celas solitárias. A maioria, ou quase todos eles, estão condenados com base em ‘processos’ fabricados sem provas consistentes. Vivem em condições desumanas e são submetidos a desrespeito e humilhações da condição humana, o que neles suscita o ódio total. Forma-se assim uma comunidade que voltará para casa com projectos de vida deturpados assentes em valores deformados..."


Vou ser franca: o ódio deles mete-me medo! E isso porque mais cedo ou mais tarde esse ódio vai transbordar. Os torturados voltar-se-ão contra toda a sociedade em vez de se voltarem contra os inspectores que os torturaram. Os casos de "terroristas nomeados" espelham o campo de batalha em que se cruzam frente a frente duas abordagens ideológicas na área da "operação antiterrorista no Norte do Cáucaso". Será que lutamos contra a ilegalidade, uma luta assente na legislação? Ou batemos a "nossa" ilegalidade contra a "deles"?


Este choque ideológico provoca faíscas hoje e amanhã. A "nomeação de terroristas" só faz crescer o número dos descontentes.


Há pouco tempo, a Ucrânia extraditou, a pedido da Rússia, um tchetcheno, Besslan Gadaev, que fora detido no início de Agosto, depois de ser identificado pelas autoridades na Crimeia, onde vivia como refugiado. Passo a citar uma carta sua datada de 29 de Agosto:


"Depois de me expulsarem da Ucrânia para Grozni, meteram-me num gabinete e perguntaram-me se matei alguém da família de Salikhov, Anzor e um amigo dele, um motorista de camião. Jurei que não matei ninguém, que não derramei sangue algum – nem russo, nem tchetcheno. Eles insistiram: "Foste tu que os mataste." Continuei a negar. Depois da minha segunda negação, começaram a espancar-me. Primeiro, deram-me dois murros no olho direito. Enquanto recuperava, ataram-me, algemaram-me e meteram-me um tubo entre as pernas, de modo que eu não pudesse mexer os braços, as algemas não chegaram. A seguir, pegaram em mim, aliás, pegaram nas extremidades daquele tubo fixo em mim e penduraram-me entre as duas mesinhas de um metro de altura, aproximadamente.


"Logo após me pendurarem, puseram-me uns fios eléctricos nos dedos mindinhos. Passados segundos, começaram a dar-me choques e a bater-me ao mesmo tempo com cacetes de borracha onde calhava. Não aguentei a dor e comecei a gritar, chamando pelo Todo-Poderoso e a pedir-lhes que parassem. Para acabar com os meus gritos, puseram-me um saco preto na cabeça."


"Quanto tempo demorou tudo isto, não sei dizer; comecei a perder os sentidos com as dores. Quando se aperceberam disso, tiraram-me o saco e perguntaram-me se eu queria falar. Respondi que sim, apesar de não ter nada a dizer. Fi-lo para evitar a tortura, nem que fosse por um tempo."


"Depois, tiraram-me do tubo e atiraram-me ao chão. Ordenaram-me: "Fala!" Respondi que não tinha nada a dizer. Então, deram-me uma pancada com o mesmo tubo em que estive pendurado, outra vez no olho direito. Caí quase inconsciente e senti vagamente que me batiam por tudo que era sítio. …Voltaram a pendurar-me e repetiram a mesma tortura. Não tenho a noção de quanto tempo tudo durou, deitavam-me água mais e mais vezes.


"No dia seguinte, deram-me banho e untaram-me a cara e o corpo com qualquer coisa. Por volta da hora de almoço, entrou um operacional à paisana e disse que estavam ali jornalistas, perante os quais eu deveria comprometer-me com três assassínios e um assalto. Ameaçou repetir tortura se eu recusasse, e ainda ameaçou humilhar-me sexualmente. Aceitei. Depois de eu ser entrevistado pelos jornalistas, obrigaram-me a confessar, oficialmente, sob as mesmas ameaças de humilhações sexuais, que as ofensas corporais foram justificadas com a minha "tentativa de fuga"..."


Zaur Zakriev, o advogado de Besslan Gadaev, afirmou perante o Centro de Defesa dos Direitos Humanos ‘Memorial’ que, na Secção Regional dos Assuntos Internos da Região de Grozni, o seu cliente foi violado física e psicologicamente. Segundo declarou o advogado, o cliente foi obrigado a confessar que praticou, em 2004, uma agressão armada contra funcionários dos órgãos dos Assuntos Internos. Além disso, os funcionários da Secção Regional dos Assuntos Internos da Região de Grozni empenharam-se para obter do seu cliente confissões de mais alguns crimes (com que ele não teve nada a ver) cometidos na povoação de Starie Atagui, Região de Grozni, República da Tchetchénia.


Afirma o advogado que, após a violação do seu cliente, são notórios os vestígios corporais. A enfermaria do Centro de Detenção de Instrução n.º 1 da Cidade de Grozni, onde B. Gadaev continua detido, acusado de banditismo (Art. 209 do Código Criminal da Federação da Rússia), efectuou um relatório médico no qual se registam danos corporais vários — vergões, feridas, equimoses, costelas partidas e perturbação de órgãos internos.


O advogado Z. Zakriev fez queixa ao Ministério Público da República da Tchechénia de todas as violações dos direitos humanos.


P. S. - Aqui se interrompe o material de Anna Politkovskaia. Não chegou a ser acabado. A redacção continua a apurar os factos não abrangidos pelo presente texto.

Nota da Direcção do jornal "NOVAYA GAZETA":

Toda a gente nos pergunta se o assassinato de Anna Politkovsakaia não estará relacionado com os materiais sobre tortura que ela anunciou na Rádio Liberdade na quinta-feira, 5 de Outubro, dois dias antes da sua morte. Hoje, nesta página, publicamos fragmentos de dois materiais não acabados da nossa observadora. Um deles, é um texto baseado num testemunho em primeira mão de torturas confirmadas por dados médicos; outro é um conjunto de fotos que deveriam sustentar um texto que não existe. No disco que estava na posse da jornalista (pedimos entrar em contacto connosco a pessoa que lhe tinha entregue a gravação vídeo) estão imagens de torturas de cidadãos desconhecidos gravadas pelos próprios verdugos. Estes serão representantes das chamadas ‘estruturas de força’ do poder oficial.