Amélia Vieira
A
poeta e nossa colaboradora Amélia Vieira, figura conceituada da poesia
portuguesa, vai publicar, no próximo mês de Maio, na segunda quinzena, o seu novo livro de poesia,
intitulado «Europa» com a chancela da
editora Cavalo de Ferro. Esse poema, O Corvo, é uma bela interpretação que
a poeta faz de um outro homónimo de Egar Allan Poe.
Com a devida autorização da autora,
reproduzimos aqui o poema/interpretação, que o julgamos muito e muito actual
face à realidade europeia dos nossos dias.
À nossa colaboradora e amiga, os
sinceros parabéns.
O CORVO
(inspirado no poema de Edgar Allan Poe)
Este
sublime poema de Poe tem múltiplas leituras, não se esgotando, por isso, em
nenhuma delas. Como estrutura é uma obra acabada, como significando ela desliza
pelo tempo agarrada a nós como uma sombra libertadora.
Capa do livro
A MINHA INTERPRETAÇÃO DO MESMO:
Urdido
nestes umbrais o Corvo negro é meu gato
Que me parece um morcego
como esta noite que trago.
Um demónio que sonha,
perdido e emparedado
De dia geme, à noite
cala, enquanto abro a janela
E entra um fero pecado.
Um manto de eternidade,
grave, como esta minha idade, esculpida
Num espelho, cego, onde
sangra só saudade......
Dizes-me agora ó
visitante, quem és e porque ficaste:
És nunca: mas já que te
tenho, hei de abrir esta janela para
Que desapareças no grau
da minha eternidade.
Estás de pé, sentado,
a andar, eis o segredo da Esfinge
Que espalhas nesta caserna onde as
sombras são já insignes?
Talvez esteja no Éden,
Eleanoro porque Minh ‘Alma chora
Ou no topo do teu
chapéu
Que na cabeça de um
pássaro
Tem um efeito de céu.
Possível não seres
ninguém e nunca mais aqui estares
Secreta é a forma que tenho de te orientar e tu em mim me inventares.
Corvo, ave de um só fôlego
Umbrais de casas de gelo
Estás parado e dás sinais como se
dissesses, já chego!
Curvo nas patas traseiras, só tens asas
Não andas nestas umbreiras......
Há aquele pé de cereja, ou de laranja lima
Que trepa da macieira de um chão de curva
infinda
O tempo não te atempou na suave
maravilha, de saberes que o que ficou
Libertar-se-á
Um dia.
Nunca mais, Corvo dos céus ,dos infernos,
dos beirais
A água molhará as penas
Azeviches, multicores, numa ilusão de condor
Roçará estes umbrais.
Ave
, Tempo, Instante, Deus .....
Lúcifer dos temporais......
Tardes quentes onde Eleanoro despejou alguns
sinais.
Traz mais sombras que grandes ondas ,onde
numa
Cintilação
de espanto levanta os telhados de antanho
E onde se nasce entre o lenho dos canteiros
ancestrais.
A brisa suave engenho está entre as tuas
insígnias
Como o meu canto amacia as feras das suas
feridas.
Ninguém! Ó pássaro deitado.
E um longo sono na bruma arranca a sua
penumbra
Num reflexo dourado.
Corvo, corvo eu te amacio as penas para
lá do cio,
Num
templo de Pomba e Estio
Atena, estátua de bronze, as Eras de
minério são.
Foram, doce a expressão, mas o tempo é
outro umbral
Mineral como a razão.
Um mais leve debruçar nestas trevas
infernais
Perto ou longe dorme então
O sabor da geração que passa sem se
buscar.
Nunca mais! É a expressão! Ó verdes
velas vedadas
Na mera transformação na busca insana
e herdada.
Dísticos, que a vida é
dupla, para quem nos riscos
Acena e se prostra nesta
margem.....
Véus, efeitos de lua
chegada.
Falas, que falo é Corvo, sem se abeirar deste Ovo,
Quebrando a asa que vai
mais para dentro ao encontro....
Da forma encontrada.
E na macia superfície
das ondas flutuantes, rasas,
Há um Albatroz que vem.
Bom Júpiter,
fecundador....
É
negro, e de ninguém!
Semeia cego, nascente, a Vida por
onde
Passa, fere, abrasa, vai
e vem.
Esta é a vontade, não o Amor
Debulhada em fortes desejos
Também aí a janela abre
Sexos
e séculos
Mais Além! Porém, só vemos os
Anjos.
Nevermore, a noite é fria e sei
que insiste
A palavra!
Ai! esta ave nua e infinda
Que sei que não és devolvida
Por esta coisa invadida
Que repete
Em ti sentida.
O teu nome nesta vida.
Nunca Mais!
O Corvo cai de cansado a
estátua jazente está.
Repito o sonho que fora uma
janela meio aberta
Voltada para a lacuna, de
acordada ficar entre esta
Coisa nenhuma.
São fantasmas estes segredos
e o mais que a alma abraça
Um toldo nos tolda o medo
enquanto quem vai não passa.
Não é ilusão nem real, não
é vento não é gente
É nada com certeza! Nem é a
Nau Catrineta.
Nada a dizer portanto nesta
emergência.
É um insone desejo de ver o
meu realejo a dar acordos finais.
Num prospecto muito antigo
onde abrigo a sinfonia numa
dimensão
que cria estes seres elementares.
Porquê
um Corvo e não outros animais?
Como tu que lês e vais a
caminho de seres, em ser, igual aos demais.
Uma frase canivete que te
veste e te despe em rasgados ais.
Uma serpentina que é dor e
desejo, num arrepio que antevejo
Ser afinal os umbrais.
Torna, sabe, ri, soletra,
quando meu delírio clama
Um maior vitupério que não
o dá mais ninguém
Reclamando a nascente que
não se sabe nem sente
Perguntando; está alguém?
Ouvindo
sei que respondes.
Sim!
Sou eu.
E
mais ninguém.
Meu Corvo de elos mais
negros imagem de meu breu
Eu vi-te e eras serpente agora
vens como um deus
Parada, estanque , já firme,
uma estátua de espanto
Faz dela teu paradeiro
E podes pôr-lhe em cima
Uma coroa de enganos.
Sou eu ainda desdobrada em
carne já soletrada
Que me deste engenho.
O paradeiro deste céu fica
perto.
Voa agora sem veleiro.....
Estradas fixam só chão
E meu destino é umbreira.
Cá dentro a mortalha fica como
os servos sem perdão.
Para que seve servir sem apelo à
condição?
O Eu matei-o em ti, disparei
tão certo o lenho
Que não és nem foste esperado
No ciclo das transformações que
tenho.
Cabra-cega, Catrineta,
viagem do mar dos cedros
Cerra a paisagem que é serra
E faz voltar à caverna o Filho
destes silvedos.
Parricida e mordaz, em que é
que o Pai te satisfaz
Se não saíste das sais de tua
Mãe Alcatraz?
Lacuna entre as estepes, no voo ofereces razões para não voares
Umbral, meu parapeito,
Pária, o destino ingrato de
seu jeito.
Corvo das Naus, vejo
âncoras, dobro o mar ....
Pois
nesta navegação
Os pássaros não choram é só
ar.
Vai meu Corvo! Curvo!
Côncavo! Coloidal.
Tive um presságio de morte e
na beira das
Gaivotas um sono de Sol e
Sal
Fizeste-te estátua de Mal.
Onde te espera o Norte.
Onde a Górgone é o Corvo que
preside à tua sorte.
Mas eu vi-os.
Estavam cegos!
Perseu apareceu.
Tinha uma espada que
esculpiu uma pedra por onde saiam .
Olhos. Eram deles! Eram
seus.
Que
grandes coisas redondas caíram agora a meus pés
Eram
bolas como grifos antes das grandes marés.....
Uma
enxurrada de espuma, informe, contorcionista, embargava
A
minha voz que me parecia nenhuma...
Mas
não eram lábios meus, saíam do cegamento
Que
entre lava se abria para não ver a
penumbra.
Deve
ser o Corvo a levantar as umbreiras deste estalar de janelas
Pálpebras
fechadas para quem arde nessas eiras.
Com
milho, solar repasto de aves canoras, mas que tem na ponta o
Combustível
que entorna o fogo das despedidas e abre numa sucção de
Contorcionista,
feras partidas.
Um nunca Mais de matéria
e aluvião,
Um
carbonizar de carnes sem suas penas
Porque
não ardem , não se comem, nem se dão.
Um
pássaro, outra vez? É um grifo
Virá
visitar-me. Para quê?
Antes
fosses um Corvo. Quando já te conhecia.
Virás
transfigurado para completares o diálogo
Deste
dia!
Mas
eu não sei falar não conheço a linguagem
São-me
emprestadas as siglas com que me hás-de
Nomear.
E
nem saberás sequer que um Corvo se fez Grifo
Nem
que a Terra era pesada nem do dar e do não dar.
És
o Pássaro à janela, porém sou eu a entrada.
Saber-me-ás
recordar?
Sem
essa lanterna acesa de velho ermita, a ele presa
Nem
bem nem mal que isso são formas de estar.....
Só
quero teu cérebro onde depus um segredo
Que
contorno como um acervo
E
me faz continuar.
E
que retenhas na alma que longe vai e alta dança
A mágoa desta herança de
te saber Só no estar.
Para mim és tudo o que tenho,
tu maçã, Eva, Hécate,
O meu tamanho. Uma beleza
que invento para que não se acabe
O repasto destas sombras. Para
que nada te falte e tu me comas.
Também
te vou explicar que o pássaro
É
passionário, passional e temerário
E
te veste com as plumas que não são
Vestes
de luas nem rebanhos de lãs puras.
Não
és de cá. Aqui não há ninguém.
Quando
disse nunca Mais!
Quis
dizer que não virás.
Ao
terreiro ledo e triste onde por sinal nunca estás.
Hoje
encontrei-te.
Que
coisas têm para fazer?
Oh!
Estás. Pareces um ser inteiro
Pensava
eu que choravas nesse terreiro.
Porque
és capaz eu já não sei, Enigma esfinge do Homem!
Talvez
seja eu agora quem te peça ajuda porque não há ave que me guie
Nesta
coisa nenhuma.
Rebenta
meu cérebro louco.
Sou
eterna. Nunca oiço!
Nunca
morro!
Mas
gostava de ver esse beiral
Talvez
me dês a conhecer a sua entrada.
E
não me tragas o fantasma que quer bater à janela
Quando
já esquecida estiver...
Que
ele é nada e eu sou ninguém
Não
pode em mim viver.
E
pensar que é buscando que se tem o que não quer!
Leva-o
como a um menino
Pela
mão bem ao seu ritmo.
Pois
que o sinto chegar
Num
leve bater de asas
Quando
um Corvo
Se
mascarar
De
Grifo.
E a janela der para um
vasto labirinto.
Aí
direi! Que vieste aqui fazer?
E
não ouvirei mais.
Nunca
Mais!
Minto
este mito?
Nada
sei.
Apenas
o pressinto.
E
digo:
Aqui
não há ninguém!
E
no instante infindo, és Tu Ó ave agoirenta.
Que
me trazes de beber
Numa
atracção infinita
Que
não despedes depois da vida
E
te prendes a um outeiro, onde nem água nem sono
Te
saciam e adormecem por inteiro.
Amélia Vieira, 2012.