com o romance "A Solidão dos Inconstantes"
“O meu quotidiano sem a Rita não é a mesma coisa. Preciso do seu sorriso e das suas histórias fantásticas, porque a Rita não era deste mundo, mas de um mundo onde a chuva nuns dias cheirava a canela e noutros a manga, os céus chegavam a ser cor de mirtilos e os mares cor de alcachofra, e havia índios que procuravam as penas pelos jardins de Paris, astronautas que não queriam abandonar a Lua, peixinhos a nadarem nas nuvens, crocodilos que passeavam pelas ruas, leões que pintavam as unhas e ursos e pinguins a discursar nos jornais e nas televisões, e bruxas de lambreta, e fadas com chapéus de palhinha e vestidos às flores ou às bolinhas, madrinhas de alguém, a quem a Rita dava indicações no metro, porque andavam sempre desorientadas, e acabavam a trocar números de telefone para depois tomarem juntas um chá verde com scones ou bolo de laranja. E eu conseguia ver tudo aquilo, conseguia ver e viver num mundo em que não viveria se não fosse pela mão, pelos olhos, pela boca, pelo coração da Rita.”
Se nunca tivesse ouvido falar no surrealismo e afins iria jurar que a Raquel tinha metido uns ácidos na imaginação. Adiante! Afinal, além de apreciar descrições (de preferência contrastadas, misturadas, baralhadas), também gosto daquelas referências que denunciam as preferências do autor e do leitor: a Ofélia de Pessoa e os girassóis de Van Gogh e o bandonéon de Piazzolla, os versos de Sophia e de Lorca, as vozes de Elis Regina e de Nina Simone, as telas de Chagal e o cinema de Kurosawa, os livros de Cervantes e de Nabokov, os discos do Stan Getz e do Sting, do Jorge Palma e do Sérgio Godinho, flamenco e bossa nova – e que ninguém se esqueça (parece sempre alertar a narradora, que tem a mania de revelar as preferências da Raquel) do Joaquin Sabina e do Chico Buarque!
Fernando Madaíl