(Especialista em Ciência Política)
Como já dissemos, este ensaio foi escritor propositadamente em exclusivo para o DF. Publicámos o primeiro capítulo no Verão. Por motivos imperiosos do Editor e por ausência do escritor do país em sucessivas ocasiões, só nos é possível retomar agora a publicação. Como compensação, temos o prazer de informar que esta será uma melhor altura para publicar o trabalho, dado que o DF está atingir picos de leitura bastante positivos. A aposta de novos públicos, sem descurarmos o público que nos conhece há cinco anos a esta parte, estará na origem deste preciso fruto.
Aos nossos leitores, e reiterando o propósito de publicarmos semanalmente o ensaio, pedimos a melhor compreensão.
II CAPÍTULO
O Liberalismo como Vontade Essencial
e o Liberalismo como (auto)Representação
Quanto à “Vontade”, necessidade “orgânica”, das sociedades mudarem os seus pilares, nos seus modos de viver e de se representarem, desde já afirmo que, como se diz em francês,”un train peut cacher un autre”, uma verdadeira mudança de vida supõe uma vaga de ocorrências que atravessaram de alto a baixo a engrenagem social, coisa que, na época, só sucedera em França e, já há mais de um século, em Inglaterra.
Outras transformações tinham moldado, em muito, a Holanda e até estados alemães, como algumas cidades post-hanseáticas e o Bade-Wuertemberg.
Não falo aqui de outros continentes, pois a consciência europeia não é ainda vulnerável a eles. Hegel dirá que a América é o continente do futuro, mas por isso mesmo não é interessante para o saber, pois só existe ciência do passado. Um dito jocoso mas seguido, na prática, a sério pela “inteligentsia” da época.
Não é a violência dos conflitos sociais por si que determina a sua eficácia transformadora, mas sobretudo a sua repercussão no eixo transversal como vertical. Ora, adiantemos já, a revolução liberal portuguesa só atinge, praticamente, o invólucro cimeiro da sociedade; esse facto estará na origem de muitos equívocos ocorridos nesse tempo. Aqui urge fazer mais uma pausa e regressar ao lado da auto-representação
Escolheremos o ano de 1836, com D.Maria II casada já com D. Fernando, da dinastia então mais conotada com o liberalismo na Europa, os Saxe-Coburg, sendo as relações avaliadas pelo lado masculino, na diplomacia vigente de então.
A revolução de Julho 1830 suscitara convulsões em toda a Europa. Não era só a perspectiva de uma nova versão de 1789. Tinham ocorrido barricadas e uma encenação suficiente para inspirar os deserdados e inconformistas, outrora desmobilizados por sucessivos terrores brancos. Mas o ingrediente da libertação das nacionalidades fora o mais tenaz em reproduzir-se de novo e com acrescida pujança, tanto mais que muitos quiseram teimar em ver em Bonaparte um promotor. Foi na Polónia e em Itália que o mito mais se enraizou, e foi aí que o movimento patenteou mais o seu fracasso. Nos estados alemães as ilusões e desilusões tinham sido trabalhadas pelo romantismo de Herder, Fichte e outros, donde, como seria de esperar, a recepção mais refundida para uso próprio e ,frequentemente, de origem pouco controlada.
Assim, foram os alemães a determinar que o critério da língua seria o mais importante na legitimação das nacionalidades. Mas aconteceu que a primeira nação a emancipar-se definitivamente depois de 1830 revoltou-se, por insondabilidades religiosas, e passando por cima de notórias clivagens linguísticas, conseguiu impor-se, pois todos os católicos, receosos de pressões e discriminações calvinistas do Estado do norte, fizeram um bloco sólido com os liberais (franco-maçons,etc..), receosos das mesmas medidas hostis noutros domínios. A Inglaterra decidiu aceitar mediar o conflito nos “Low Countries” e aprovar a escolha de um príncipe alemão, Leopoldo Saxe-Coburg, como monarca.
A Bélgica , até 1789, designada como a parte austríaca dos países baixos, foi buscar uma designação remetendo para uma longínqua, inexacta e improvável ligação com a velha tribo celta dos belgas sobre a qual Júlio César dissera que eram os mais bravos gauleses.
Como costume na época, o príncipe indigitado, favoreceu a adopção do francês, sobretudo na capital Bruxelas, situada no centro da zona onde a população, tirando o caso de alguns aristocratas e grandes comerciantes, que se exprimiam em neerlandês, como no reino do norte, segundo usos dialectais muito variáveis.
No sul, na zona então mais rica, em torno de Liége e Namur, falava-se wallon, que se poderia considerar um dialecto incompreensível do francês Até que, em 1814, o dialecto foi proibido nas escolas e imposto o mais académico francês. Por vezes até se permitiam e divulgavam usos que em França tinham caído no desuso, mas ainda considerados por muito tempo admissíveis na Academia, em Paris.
Como dizer “septante”, o que em França só ocorre para designar a Bíblia, traduzida para grego por um numero correspondente de hebreus.
Leopoldo e a Bélgica (Belgium, para os mediadores) gabavam-se de ter a mais avançada Constituição escrita da Europa. As exigências censitárias não eram muito importantes, só excluíam mesmo os mais pelintras, e os direitos e garantias incluídas eram comparativamente muito invejáveis.
Embaraçada, Londres forjou a palavra “the Netherlands” ,transcrição adaptada do neerlandês, para substituir “the Low Countries”, o que chamamos em português “Holanda”, designação incorrecta nas três línguas intervenientes, pois deriva do nome da província de Amesterdão, talvez a mais relevante historicamente, mas apenas uma delas.
Leopldo fazia questão em afirmar que, mesmo assim, o país precisava de um soberano que lhe desse alma e ambição. E ambição era coisa que não lhe faltava. Entendia fazer valer o seu liberalismo como facto digno de proveitos, equiparando a esse liberalismo a um dom natural da dinastia Sachs-Coburg ou, mais explicitamente. Saxe-Coburg, tal como assinava o seu ilustre parente príncipe Albert, de Inglaterra, ou o promissor sobrinho Ferdinand, desde 1836 consorte de Portugal, por cujo bem-estar decidiu velar com um zelo tão manifesto que terá irritado por vezes os zeladores internacionalmente como tal tidos, os britânicos, e seus fieis Terceira e Saldanha.
Sua norte-céltica Majestade esquecia que mais do que o excesso de zelo, detestavam tudo o que soasse a confusão entre o rei em conselho (venerado do mesmo modo que a signoria (1) que governa em nome do Dodge de Veneza) e o rei concreto (um desprezível comediante em tudo o que excedesse toda a teatralização montada desde Jorge I, do Hannover).
O segredo do liberalismo estava inscrito nessa encenação, árdua de aprender, onde não existiam primeiros-ministros, mas Lordes do Tesouro, que ditavam o que o soberano pensava ser proveitoso para o reino, o que dependia de eleições.
A jusante o rei devia ignorar os mecanismos de decisão; a montante o protocolo era o de um conto de fadas. O Lorde do Almirantado até podia contar mais na cerimónia real do que o tal Lorde do Tesouro, que se avinhava ser o mestre-festas.
Mas falava eu no rei Leopoldo Saxe-Coburg, membro da suprema dinastia liberal, os Saxe-Coburg, dinastia que tem de ser destacada pelo lado varonil, como foi fazer-se no continente. Para completar este revestimento liberal, no caso de Leopoldo, só faltava um impériozinho colonial "overseas" (2), pois os impérios de uma peça só, eram então o lote das forças mais retrógradas europeias ou semi-europeias, como a Austro-Hungria e a Russia czarista,sendo esta a detentora da maior guarda de socorro a soberanos em apuros.
Um Estado liberal que se preze deveria participar nas grandes missões civilizadoras, e essas possessões permitiam então aceder a uma política mundial, uma Weltpolitik, como diria Bismark, mesmo antes de lograr uns apêndices africanos.
Com muito esforço e difícil consentimento britânico, lá conseguiu o Congo para si, pessoalmente, após patrocinar exploradores, não conseguindo que Portugal lhe cedesse qualquer parcela das terras onde só na costa estava presente.
Foi tudo o que a sua dedicação ao sobrinho Fernando conseguiu, e começou a mais compreender que a preferência dada aos portugueses não era motivada por qualquer dom especial de Lisboa. Pelo contrário, a fraqueza deste reino era mesmo um dos seus trunfos pertinentes.
Falei da Europa liberal como representação na cena diplomática. É evidente que poderia haver razões que fariam esconder despotismos, ou até outras constituições, de facto, mais liberais do que a Belga. Era, de facto, o caso da Constituição norueguesa de 1814, em pleno vigor, que contrastava com a congénere sueca, de pendor cartista, criando duas situações politicas divergentes que o monarca comum de ambos os países tinha de enfrentar. Mas, para a diplomacia e imprensa internacional, era assumido que o primeiro país era um protectorado do segundo, não obstante o dualismo se verificar também entre a Áustria e a Hungria, e aí também as politicas dos dois Estados divergirem, no que respeita as minorias, por exemplo. Porém, era conveniente para a Inglaterra (que conseguira evitar uma guerra civil ali, convencendo o rei da Suécia, à época o marechal Benardotte de Pontecorvo não contrariar os seus novos súbditos) que a descrição fosse a palavra de ordem.
Por seu lado, a entrada de lavradores no Parlamento, punha outros problemas além do garbo com que alguns para ali se dirigiam quase em fato de trabalho. Ao contrário das esperanças dos seus apologistas máximos, como Bjoernson, eles levavam para ali algumas das suas crenças seculares luteranas e pediam que se interditasse aos judeus a entrada na Noruega, perante o embaraço dos partidos citadinos. O que não impediu que, por outro lado, de terem entusiasticamente aplaudido a extinção da aristocracia, reduzida à única pessoa do rei, por estipulação constitucional, e apoiassem também a dos morgadios, dos quais só um único pequeno permaneceu e permanece ainda hoje, como relíquia de museu.
Na maioria das causas, as suas posições eram relativamente avançadas, tanto no campo de vista social como político, mas com incertas e inesperadas posições de temer. Os intelectuais, como Bjornson, nisso seguido pelo mais conservador, H.Ibsen, mudariam em breve a agulha para o feminismo. O movimento operário tardará em formar-se autonomamente, para o que concorre o grau de organização já atingido por outros sectores e movimentos (linguísticos, pedagógicos, etc..).
Este fervilhar de movimentos e obras culturais durante muito tempo só tem um público estrangeiro atento: a Dinamarca. Só já para o fim do século, atinge a própria Suécia, Strindberg segue e reage perante Ibsen e etc…
Observação do Editor:
1) Foi um significado substantivo abstracto de "do governo; regem autoridade; soberania de facto; senhorio em muitas das cidades europeias durante o período medieval e renascentista"
2) Palavra inglesa que significa: “longe, exterior, estrangeiro, além-mar, etc...”
(Continua na próxima semana, com a publicação do III capítulo)