domingo, janeiro 31, 2010

Editorial



O "pecado organizado" e a "feira das vaidades"



“As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas,
Porém são capazes
De comer galinhas”
Sophia de Mello Breyner Andresen (Livro Sexto)

1 - LIVE AID. No próximo mês de Julho completam-se 25 anos após aquele que foi um dos maiores eventos musicais da história da Humanidade, "Live Aid”.
Organizado por Bob Geldof e destinado a angariar fundos para combater a fome no continente africano, principalmente na Etiópia, o espectáculo – simultaneamente realizado em Londres (Inglaterra), no estádio do Wembley, e em Filadélfia (EUA), no Estádio JFK – foi assistido, ao vivo, por cerca de 200 mil pessoas e visto por cerca de 400 milhões através de TV’s de mais de 60 países (o valor dos direitos de transmissão foi destinado a esse fundo monetário).
Freddie Mercury, Madonna, Duran Duran, Mick Jagger, Paul McCartney, Stevie Wonder, Paul Simon e Diana Ross foram algumas das muitas figuras emblemáticas da música e da canção que, muito generosamente, muito militantemente, deram corpo ao projecto de Geldof com as suas participações em palco e na gravação de discos, dos quais sairam milhões e milhões de exemplares. Tudo isso com a intenção de se angariar uma avultadíssima verba para esse objectivo, altruísta. Porém, a fome prosseguiu (e prossegue) em África; volvidos alguns anos após a bonita e generosa iniciativa, foram várias as organizações de solidariedade e de apoio no terreno, nomeadamente na Etiópia, que vieram dizer que jamais receberam uma “migalha de dinheiro” para o fim anunciado. Por vergonha de uns e por provável cumplicidade de outros, fez-se um manto de silêncio, tão ensurdecedor, que parecia roçar o medo.


2. HAITI. Recentemente, o Haiti foi sacudido por um violento terramoto, cujo balanço de mortos, feridos e destruição generalizada ainda não estará definitivamente feito.
Acreditamos que a maioria dos que se mostram solidários e têm trabalhado em prol das vítimas daquela tragédia (com voluntariado e doações) está a usar da sinceridade mais genuína e de insuspeito amor ao próximo, para se acudir a uma situação tão emergente quanto dramática. Não duvidamos.
No entanto, permitam-nos dizer, sem oportunismo ou divagação, que a tragédia do Haiti, se teve o seu culminar com a tragédia natural, ela deve-se também a uma outra tragédia: à “tragédia social” - à miserável condição daquele povo, num país onde a população vive com menos de € 1 por dia e onde abundam as barracas, numa região do globo que já não é terceiro mas quarto mundo.
E onde estavam as TV’s na véspera do terramoto? Onde estavam determinadas organizações e figuras “folclóricas” de solidariedade tão publicitada? Onde estava o habitual canal português de TV que, numa indiscutível atitude de exploração da dor alheia, passa e repassa imagens de desgraça? Ao explorar a dor alheia, faz a exploração económica da situação, porque o objectivo não é de solidariedade mas o de atrair a atenção dos telespectadores. Aquando da queda da ponte de Entre-Os-Rios, esse canal até fez uma espécie de spot publicitário com imagens da infraestutura destruída e com sons de gritos de fundo, a “ilustrar” o produto. Que mórbido!
Os públicos são “educados” (bem ou mal são “educados” pelas TV’s), nomeadamente uma boa parte da opinião pública - a que gosta de ter pena, a que gosta da desgraça, a que gosta de notícias de tragédia e de notícias de “faca e alguidar”, logo que seja na casa dos outros; mesmo que não se aperceba, isso está-lhe alojado no subconsciente, de uma forma colectiva, mum mediatismo deveras perigoso em termos culturais e até cívicos.
Agora, já que não há outra a alternativa, estamos solidários e apelamos à solidariedade com as vítimas do Haiti, mas achamos que esta não é a via mais correcta de quem tem nas mãos o poder – político e económico – de ter feito algo a tempo, e que não fez!
O fenómeno do subdesenvolvimento no mundo, como o Haiti, resulta dos condicionalismos impostos pelas potências aos países mais pobres em não poderem traçar perfis económicos e até políticos que levem à promoção das "economias regionais" e no sentido de haver alguma equidade - equidade em tudo, até a de relação, entre "tubarões" e "golfinhos". Embora os países mais ricos ofereçam qualidade de vida a muitos dos seus naturais e residentes, o sistema económico que lhes é subjacente assenta em assimetrias inevitáveis e prolongadíssimas, que começam no seu interior e que se vão alargando ao terceiro (ou quarto) mundo. E é aqui - neste submundo, verdadeiro “mundo cão” -, que acontecem todas as misérias, para que seja sustentada a abundância, o consumismo e alienação no primeiro mundo, com base em governos corruptos e déspotas nas regiões mais pobres, alimentados por cumplicidades externas e por redes infernais, como, por exemplo, os narcotraficantes, agentes de turismo sexual (até de menores!), exploradores do trabalho infantil, máfias, etc, etc…
Pobre Adam Smith, fundador do liberalismo económico! A economia aberta é tantas vezes uma balela. Como se o recurso ao proteccionismo, por exemplo, por parte das economias mais potentes não fosse uma realidade!
Mal-aventurado Milton Friedman e quem lhe atribuiu o prémio Nobel da Economia, em 1983! O autor do livro “Liberdade para Escolher”, falecido há quatro anos, da escola política de “Chicago Boys”, que, de tão fervoroso crente que era no capitalismo selvajem, caiu na contradição política de ter tomado o controlo do Estado chileno ao tempo da ditadura de Augusto Pinochet.
Santa inocência de João Paulo II, que, ainda antes da queda dos antigos regimes do Leste europeu, acreditava na "conversão" redentora da economia liberal numa de "rosto humano”. Como se a morte de Olof Palme - arauto da social-democracia, na Suécia - não estivesse rodeada de circunstâncias misteriosas, nunca esclarecidas!
Os países do terceiro (ou quarto) mundo são pobres por natureza, porque, queira-se ou não, não são mais do que “tubos de ensaio” da abundância do primeiro mundo. Neste sistema económico generalizado hoje no globo, é impossível estabelecer um mínimo de equidade, porque o sistema baseia-se em assimetrias, em desigualdades e em “mecanismos artificiais” para sobreviver. Por exemplo, a ocupação do Iraque e o narcotráfico instituído no Afeganistão são dois desses mecanismos. Não precisamos de recorrer aos pensadores marxistas para concluirmos que a realidade económica é a realidade política, e até militar! Em todo o mundo! A expressão bíblica "a posse da Terra" não tem a ver só com a economia mas também, e essencialmente, com o domínio político no globo.
A plena “economia aberta” não existe. No campo das assimetrias económicas entre os países ricos e pobres, João Paulo II – que era muito conservador em termos teológicos e algo progressista em termos de teoria económica e social – lembrou muitas vezes essa desigualdade, ao pondo de a considerar um "escândalo”. Pena foi não ter dado continuidade, na prática, a esse seu pensamento. A saída de franciscanos, inacianos e jesuítas do Vaticano, a partir dos anos 90, deu lugar à entrada de "conselheiros" menos clarividentes...
A tragédia do Haiti, tal como muitas outras pelo mundo e pelo tempo fora, tem origem em todos nós. Sophia, cantada por Fanhais, designou esta realidade de “pecado organizado”.
Há dias, ouvimos um missionário dizer que espera que esta onda de solidariedade em massa não seja uma “feira de vaidades”. Outro missionário, numa entrevista de rádio, frisou bem várias vezes: “Antes do terramoto, ninguém sabia que nós (missionários) já lá estávamos há muito, que sempre estivemos a ajudar aquela gente, tão pobre, nas piores condições… Só quiseram saber de nós depois da tragédia; vieram dar publicidade ao nosso trabalho na onda de todo este mediatismo. Mas nós já cá estávamos, e eram tão poucos os que antes estavam solidários connosco!”.

3 - ACIDENTE NA A4. A semana que passou ficou marcada pela morte de cinco operários da construção civil e três feridos, na A4, em Valongo, naturais e residentes no Marco de Canaveses. A culpa terá sido do condutor do veículo que transportava os trabalhadores, provavelmente, pela alta velocidade. Já todos nós nos habituamos a ver este "filme" nas auto-estradas, de manhã cedo ou ao fim da tarde, principalmente por carrinhas carregadas de trabalhadores do ramo.
A maioria das empresas de construção garantem transporte aos seus operários; nenhum deles dirá, certamente, que quer ir por seu próprio meio. Há aqui, logo, uma "imposição laboral" ao trabalhador, muitas vezes aliada a uma certa precariedade no emprego, porque muitas dessas empresas trabalham em regime de subempreitada, livrando, assim, as grandes construtoras de compromissos sociais com assalariados.
E a nossa pergunta é esta: o que tem feito a Inspecção de Trabalho neste aspecto? O transporte de trabalhadores a um local de laboração por iniciativa patronal é da superintendência tutelar da referida Inspecção? Ou não? No caso concreto - do acidente em Valongo -, se a culpa foi do condutor adstrito à pequena empresa, quem será legalmente responsabilizado? Os seguros ficam de fora; quem vai ressarcir aquelas cinco famílias (alguns terão deixado mulher e filhos)? Vão as pobres famílias receber apenas subsídio de funeral? As viúvas vão passar a receber uns míseros euros mensais de uma “meia” reforma? A referência ao caso concreto é apenas para ilustrarmos a realidade laboral do sector, já que não temos informação concreta da empresa do Marco nem nos compete aqui apurar responsabilidades.


Não seremos devidamente coerentes na solidariedade que prestamos aos que estão longe quando nem sequer nos interrogamos com os dramas que temos à porta.

José Carlos Pereira