segunda-feira, agosto 10, 2009

"A Justiça penal e o Teatro das Sombras", artigo de opinião da Procuradora Maria José Fernandes (JN, de ontem)

É com a devida vénia que transcrevemos na íntegra o artigo de opinião de Maria José Fernandes, Procuradora da República nas Varas Criminais do Porto. O texto, intitulado "A Justilça penal e o Teatro das Sombras" vem publicado na edição de ontem do Jornal de Notícias e inserido no tema de capa do caderno DOMINGO, nesta edição com o tema "Justiça - A montanha e e o rato".

A Justiça penal e o Teatro das Sombras

Quando leio notícias sobre o desfecho de processos-­crime que vinham sendo objecto de infalível aten­ção dos média, ocorre-me uma interrogação obriga­tória sobre o impacto que tal decisão provocou no chamado "sentido de jus­tiça" do cidadão comum.
A Justiça, concretizada nas decisões que vamos conhecendo, coincide com a expectativa do cidadão que a aguarda?
Quando se trata de notícias de absol­vições e/ou de condenações muito aquém da acusação, em processos-cri­me muito divulgados, o comum cidadão, perplexo questionará: o que se passa nos Tribunais? Julgarão bem? Ou serão as pessoas acusadas sem fundamento e sem provas?
A divulgação de detalhes compreen­de os indícios da prática de crime, o de­senrolar da investigação, a acusação, as provas e, finalmente, o julgamento e a sentença.
Tudo isto em profusão noticiosa in­sistente e prolongada no tempo.
Não é de estranhar, portanto, que se crie na opinião pública uma expectativa de condenação do arguido acusado.
Por outro lado, notícias vindas do es­trangeiro, sobre condenações rápidas e de grande dureza, permitem teses simplistas de justiça comparada.
Os exemplos são frequentes: o caso Madoff ou a execução, na China, de dois financeiros condenados por terem defraudado elevado número de investido­res de boa-fé. .
Não raras vezes, a decisão final sur­preende por inesperada: ou o arguido é absolvido ou, se é condenado, a conde­nação reduziu-se a um número de cri­mes muito inferior ao que lhe era impu­tado e em vários casos a crimes de me­nor gravidade.
Há, a partir daqui, uma aparência de inutilidade de tanta actividade proces­sual, já que o resultado se resumiu ou a uma absolvição ou a uma condenação ínfima. Por que é que isso acontece?
Não há uma razão simplista e única, que sirva de resposta para a todos os casos.

“O arguido é muito mais pro­tegido nos seus direitos
de personalida­de e de defesa do que a vítima”

Numa opinião estritamente pessoal, diria que a principal razão – não a única – pode encontrar-se no exagero securitário das normas processuais penais res­peitantes à aquisição e produção da pro­va do crime.
No Código de Processo Penal portu­guês (CPP), o arguido é muito mais pro­tegido nos seus direitos de personalida­de e de defesa do que a vítima.
Nas regras sobre recolha e validade de provas, o formalismo impõe-se, do­mina e pode mesmo esmagar a verdade material.
Sendo que, a verdade material é a cha­ve da realização da Justiça.
Poderia expor aqui vários exemplos, que elucidariam o leitor o que não é pos­sível por limitação do espaço de escrita.

“As testemunhas alegam esquecimento, ou mentem e
negam o que antes sabiam, ou na melhor hipótese
lá vão dizendo o que sabem, com insegurança e tibieza.
E porquê? Por temor reverencial, por medo
ao odioso social, por medo de re­presálias…”

Sinteticamente, adianto que as regras são tantas e tão estritas, que não é difícil que alguma se ultrapasse, por mero lap­so. Lapso que invalidará toda a prova, mesmo que com ela se demonstre a prá­tica de um crime muito grave.
Poderia adiantar-se ainda uma outra razão: a falibilidade da prova testemu­nhal, o meio de prova mais usado.
Durante o Inquérito, as testemunhas falam, viram tudo, sabem tudo com de­talhes e com certezas.
Porém, chegado o julgamento – e com uma frequência indesejável – as testemu­nhas já nada sabem, já nada recordam, nada viram. Ou alegam esquecimento, ou mentem e negam o que antes sabiam, ou na melhor hipótese lá vão dizendo o que sabem, com insegurança e tibieza.
E porquê? Por temor reverencial, por medo ao odioso social, por medo de re­presálias, por desmotivação induzida...
Mas, segundo uma regra processual, no julgamento as testemunhas não po­dem ser confrontadas com as declara­ções prestadas no inquérito... a não ser que o arguido consinta que isso se faça.
É certo que podem incorrer num cri­me de falsidade de testemunho, mas a repetição descarada desta atitude demonstra que a incriminação não é dis­suasiva.
Em processos em que a prova princi­pal é a prova testemunhal e sendo os ar­guidos pessoas com importância social, é de esperar - infelizmente - que a prova testemunhal tão fértil e segura durante o Inquérito, se evapore durante o julga­mento.
E se para o lado da Acusação é neces­sário provar tudo, com muita certeza, para o lado da Defesa bastará criar a dú­vida em quem tem que julgar, já que o princípio in "dubio pro reo" conduzirá à absolvição.
Concluindo, diria que as regras pro­cessuais do nosso CPP estão para a ver­dade dos factos como a tela do teatro de sombras está para os seus actores ima­ginários.

Links de notícias sobre casos em que o Ministério Público não conseguiu provar as respectivas acusações. Clique em cima de cada um dos links.