É com a devida vénia que transcrevemos na íntegra o artigo de opinião de Maria José Fernandes, Procuradora da República nas Varas Criminais do Porto. O texto, intitulado "A Justilça penal e o Teatro das Sombras" vem publicado na edição de ontem do Jornal de Notícias e inserido no tema de capa do caderno DOMINGO, nesta edição com o tema "Justiça - A montanha e e o rato".
A Justiça penal e o Teatro das Sombras
Quando leio notícias sobre o desfecho de processos-crime que vinham sendo objecto de infalível atenção dos média, ocorre-me uma interrogação obrigatória sobre o impacto que tal decisão provocou no chamado "sentido de justiça" do cidadão comum.
A Justiça, concretizada nas decisões que vamos conhecendo, coincide com a expectativa do cidadão que a aguarda?
Quando se trata de notícias de absolvições e/ou de condenações muito aquém da acusação, em processos-crime muito divulgados, o comum cidadão, perplexo questionará: o que se passa nos Tribunais? Julgarão bem? Ou serão as pessoas acusadas sem fundamento e sem provas?
A divulgação de detalhes compreende os indícios da prática de crime, o desenrolar da investigação, a acusação, as provas e, finalmente, o julgamento e a sentença.
Tudo isto em profusão noticiosa insistente e prolongada no tempo.
Não é de estranhar, portanto, que se crie na opinião pública uma expectativa de condenação do arguido acusado.
Por outro lado, notícias vindas do estrangeiro, sobre condenações rápidas e de grande dureza, permitem teses simplistas de justiça comparada.
Os exemplos são frequentes: o caso Madoff ou a execução, na China, de dois financeiros condenados por terem defraudado elevado número de investidores de boa-fé. .
Não raras vezes, a decisão final surpreende por inesperada: ou o arguido é absolvido ou, se é condenado, a condenação reduziu-se a um número de crimes muito inferior ao que lhe era imputado e em vários casos a crimes de menor gravidade.
Há, a partir daqui, uma aparência de inutilidade de tanta actividade processual, já que o resultado se resumiu ou a uma absolvição ou a uma condenação ínfima. Por que é que isso acontece?
Não há uma razão simplista e única, que sirva de resposta para a todos os casos.
A Justiça, concretizada nas decisões que vamos conhecendo, coincide com a expectativa do cidadão que a aguarda?
Quando se trata de notícias de absolvições e/ou de condenações muito aquém da acusação, em processos-crime muito divulgados, o comum cidadão, perplexo questionará: o que se passa nos Tribunais? Julgarão bem? Ou serão as pessoas acusadas sem fundamento e sem provas?
A divulgação de detalhes compreende os indícios da prática de crime, o desenrolar da investigação, a acusação, as provas e, finalmente, o julgamento e a sentença.
Tudo isto em profusão noticiosa insistente e prolongada no tempo.
Não é de estranhar, portanto, que se crie na opinião pública uma expectativa de condenação do arguido acusado.
Por outro lado, notícias vindas do estrangeiro, sobre condenações rápidas e de grande dureza, permitem teses simplistas de justiça comparada.
Os exemplos são frequentes: o caso Madoff ou a execução, na China, de dois financeiros condenados por terem defraudado elevado número de investidores de boa-fé. .
Não raras vezes, a decisão final surpreende por inesperada: ou o arguido é absolvido ou, se é condenado, a condenação reduziu-se a um número de crimes muito inferior ao que lhe era imputado e em vários casos a crimes de menor gravidade.
Há, a partir daqui, uma aparência de inutilidade de tanta actividade processual, já que o resultado se resumiu ou a uma absolvição ou a uma condenação ínfima. Por que é que isso acontece?
Não há uma razão simplista e única, que sirva de resposta para a todos os casos.
“O arguido é muito mais protegido nos seus direitos
de personalidade e de defesa do que a vítima”
Numa opinião estritamente pessoal, diria que a principal razão – não a única – pode encontrar-se no exagero securitário das normas processuais penais respeitantes à aquisição e produção da prova do crime.
No Código de Processo Penal português (CPP), o arguido é muito mais protegido nos seus direitos de personalidade e de defesa do que a vítima.
Nas regras sobre recolha e validade de provas, o formalismo impõe-se, domina e pode mesmo esmagar a verdade material.
Sendo que, a verdade material é a chave da realização da Justiça.
Poderia expor aqui vários exemplos, que elucidariam o leitor o que não é possível por limitação do espaço de escrita.
Numa opinião estritamente pessoal, diria que a principal razão – não a única – pode encontrar-se no exagero securitário das normas processuais penais respeitantes à aquisição e produção da prova do crime.
No Código de Processo Penal português (CPP), o arguido é muito mais protegido nos seus direitos de personalidade e de defesa do que a vítima.
Nas regras sobre recolha e validade de provas, o formalismo impõe-se, domina e pode mesmo esmagar a verdade material.
Sendo que, a verdade material é a chave da realização da Justiça.
Poderia expor aqui vários exemplos, que elucidariam o leitor o que não é possível por limitação do espaço de escrita.
“As testemunhas alegam esquecimento, ou mentem e
negam o que antes sabiam, ou na melhor hipótese
lá vão dizendo o que sabem, com insegurança e tibieza.
E porquê? Por temor reverencial, por medo
ao odioso social, por medo de represálias…”
Sinteticamente, adianto que as regras são tantas e tão estritas, que não é difícil que alguma se ultrapasse, por mero lapso. Lapso que invalidará toda a prova, mesmo que com ela se demonstre a prática de um crime muito grave.
Poderia adiantar-se ainda uma outra razão: a falibilidade da prova testemunhal, o meio de prova mais usado.
Durante o Inquérito, as testemunhas falam, viram tudo, sabem tudo com detalhes e com certezas.
Porém, chegado o julgamento – e com uma frequência indesejável – as testemunhas já nada sabem, já nada recordam, nada viram. Ou alegam esquecimento, ou mentem e negam o que antes sabiam, ou na melhor hipótese lá vão dizendo o que sabem, com insegurança e tibieza.
E porquê? Por temor reverencial, por medo ao odioso social, por medo de represálias, por desmotivação induzida...
Mas, segundo uma regra processual, no julgamento as testemunhas não podem ser confrontadas com as declarações prestadas no inquérito... a não ser que o arguido consinta que isso se faça.
É certo que podem incorrer num crime de falsidade de testemunho, mas a repetição descarada desta atitude demonstra que a incriminação não é dissuasiva.
Em processos em que a prova principal é a prova testemunhal e sendo os arguidos pessoas com importância social, é de esperar - infelizmente - que a prova testemunhal tão fértil e segura durante o Inquérito, se evapore durante o julgamento.
E se para o lado da Acusação é necessário provar tudo, com muita certeza, para o lado da Defesa bastará criar a dúvida em quem tem que julgar, já que o princípio in "dubio pro reo" conduzirá à absolvição.
Concluindo, diria que as regras processuais do nosso CPP estão para a verdade dos factos como a tela do teatro de sombras está para os seus actores imaginários.
Poderia adiantar-se ainda uma outra razão: a falibilidade da prova testemunhal, o meio de prova mais usado.
Durante o Inquérito, as testemunhas falam, viram tudo, sabem tudo com detalhes e com certezas.
Porém, chegado o julgamento – e com uma frequência indesejável – as testemunhas já nada sabem, já nada recordam, nada viram. Ou alegam esquecimento, ou mentem e negam o que antes sabiam, ou na melhor hipótese lá vão dizendo o que sabem, com insegurança e tibieza.
E porquê? Por temor reverencial, por medo ao odioso social, por medo de represálias, por desmotivação induzida...
Mas, segundo uma regra processual, no julgamento as testemunhas não podem ser confrontadas com as declarações prestadas no inquérito... a não ser que o arguido consinta que isso se faça.
É certo que podem incorrer num crime de falsidade de testemunho, mas a repetição descarada desta atitude demonstra que a incriminação não é dissuasiva.
Em processos em que a prova principal é a prova testemunhal e sendo os arguidos pessoas com importância social, é de esperar - infelizmente - que a prova testemunhal tão fértil e segura durante o Inquérito, se evapore durante o julgamento.
E se para o lado da Acusação é necessário provar tudo, com muita certeza, para o lado da Defesa bastará criar a dúvida em quem tem que julgar, já que o princípio in "dubio pro reo" conduzirá à absolvição.
Concluindo, diria que as regras processuais do nosso CPP estão para a verdade dos factos como a tela do teatro de sombras está para os seus actores imaginários.
Links de notícias sobre casos em que o Ministério Público não conseguiu provar as respectivas acusações. Clique em cima de cada um dos links.