Alexandra Oliveira, em entrevista concedida ao JN (hoje publicada), desmonta os mitos recorrentes sobre o trabalho sexual e defende a sua regulamentação como profissão.
Alexandra Oliveira é investigadora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto; doutorou-se com uma tese sobre a prostituição de rua no Porto.
Recusa a ideia de que o trabalho sexual é inerentemente explorador. Porquê?
Porque o que permite que este trabalho seja explorador é o modo como é exercido. Imagine uma imigrante que vem para a Europa. Quer trabalhar mas está ilegal: onde é que consegue inserir-se laboralmente? No mercado de trabalho informal, onde não tem quaisquer direitos assegurados. Isso permite a exploração. Uma imigrante ilegal a trabalhar como prostituta não pode sequer fazer queixa à Polícia se for agredida ou roubada porque o que a Polícia fará em primeiro lugar é tratá-la como imigrante ilegal; e há casos de polícias que, esquecendo a sua função, abusam de mulheres por saberem que elas não podem fazer queixa por estarem ilegais... É isso que permite que este trabalho seja explorador. Mas os polícias, quando vão fazer rusgas aos bares de alterne, por exemplo, se em vez de deterem as alternadeiras para repatriá-las obrigassem os empregadores a contratá-las como funcionárias que são, se a inspecção fosse no sentido de regular a sua actividade profissional, resultaria daí um benefício efectivo para aquelas mulheres. O discurso das autoridades - policiais, judiciais e políticas - é o da luta contra o tráfico e a exploração sexual, é aparentemente humanista, mas, na prática, trata estas mulheres não como vítimas mas como delinquentes.
O que leva uma mulher a ingressar no mundo da prostituição? São coagidas, ou trata-se de uma escolha livre?
A necessidade de ganharem dinheiro, e de ganhar mais, e mais rapidamente, do que aquele que as suas habilitações literárias e profissionais lhes permitiriam auferir noutra profissão. É essa a motivação. E há uma escolha. Embora possamos reconhecer uma série de constrangimentos estruturais – que todos nós temos –, têm a capacidade de determinar o seu percurso e, numa série de opções possíveis, escolhem a que acham melhor para elas. Ora, em determinado momento, após equacionarem vantagens e desvantagens, optam pela prostituição. Porquê? Muitas vezes, por exemplo, porque conhecem mulheres que já o faziam e percebem as vantagens disso. A ideia de que há um chulo a coagi-las, que as obriga à actividade e quer ganhar dinheiro com elas, não a confirmei empiricamente; talvez no passado fosse mais notório mas, neste momento, não me parece (à excepção das redes de tráfico e exploração sexual que existem).
Advoga que as prostitutas não são agentes passivos na relação com o cliente, mas antes activos, tendo até bastante poder. Em que sentido?
O poder do cliente existe até ao momento em que escolhe a prostituta. A partir daí, o poder passa a ser do trabalhador do sexo. Porque então é ele que dita as regras: quanto leva, o que faz ou não, se quer ou não preservativo... as regras são ditadas por ele. Não encontrei evidências que provem a ideia de que se lhes oferecerem dinheiro, farão qualquer coisa. Aliás, uma vez estava na zona de uma pensão que tinha muitas estrangeiras e um indivíduo com poder económico notório gostou muito de uma romena. Mas não queria ir à pensão, e percebia-se: era reles, receava que não tivesse higiene e queria levá-la para um hotel. Ofereceu-lhe o quintuplo do que ela pedia, e, mesmo assim, ela recusou. Portanto, são de facto elas que delimitam as fronteiras.
Como é que as prostitutas lidam com o estigma de que são objecto e se confrontam com os seus próprios valores morais? Ou são completamente amorais?
Não, não; os seus padrões morais são muito bem definidos. Elas são, até, muito conservadoras, acreditam na monogamia. O que fazem é recorrer a técnicas de neutralização, de racionalização, formas de lidarmos psicologicamente com os nossos problemas. Neste caso, é muito frequente, por exemplo, as prostitutas que têm companheiros – marido ou namorado –, que é a maioria, terem com eles relações de fidelidade. E são-lhes fiéis, porque não vêm infidelidade na sua actividade: para elas, são relações de trabalho, relações instrumentais nas quais não há envolvimento emocional. Distinguem essas relações das que têm com os companheiros, os quais usam as mesmas formas de racionalização. Dizem: “A minha mulher não está a trair-me porque o que ela faz com os clientes não é por prazer, é por trabalho. Portanto, não me está a trair”.
Mas essas técnicas são sempre eficazes? Elas explicitam a sua actividade nas redes sociais em que se inserem?
Estas técnicas ajudam a minimizar o impacto, mas não são completamente eficazes, designadamente em relação ao estigma, que é muito forte, e leva a que ocultem o que fazem. Geralmente, os familiares mais próximos, como o marido, os irmãos, sabem, mas o resto da família não. Os filhos geralmente são pequenos e elas escondem, até como forma de os proteger de algo que sabem ser visto de forma negativa e que se pode virar contra eles.
Quando é que o abandono da actividade tem maior probabilidade de ocorrer, e que factores concorrem para isso?
Há uma fase inicial de grande tensão, porque, embora a entrada na actividade seja ponderada, as mulheres não antevêem a tensão que lhes pode acarretar, e quase sempre as primeiras experiências são negativas. Mas, depois, repõem o equilíbrio e passam a encarar as relações sexuais como instrumentais, sem implicação emocional e, portanto, deixa de ter repercussões negativas. Nessa fase inicial, quando a tensão é grande, pode ocorrer uma desistência; depois disso, a probabilidade de abandono é mais elevada quando começam a ter alguma idade – quer por cansaço, quer porque, à medida que envelhecem, deixam de ser tão apetecíveis e o seu rendimento diminui drasticamente. Há casos em que deixam a actividade na sequência de um acontecimento traumático: por exemplo, uma prostituta que engravida e, com o nascimento do filho, resolve sair; ou porque contrai SIDA. Mas o que vem depois não é fácil: a um trabalhador do sexo que quer deixar a prostituição mas não tem formação nem experiência profissional, é difícil o ingresso no mundo laboral.
Algumas prostitutas mostram-se renitentes em deixar a actividade, ou mantêm-se nela mesmo que incitadas pelos companheiros a desistir. Porquê?
Bom, isso também derruba o estereótipo que diz que “a mulher não quer estar lá por opção, há sempre alguém a obrigá-la e, se ela puder, sai”. Não é verdade. Há mulheres que dizem que não trocavam a actividade por outro emprego com remuneração igual. Conheci mulheres cujos companheiros gostariam que deixassem a prostituição e elas recusam por perceberem ali a sua autonomia e capacidade de decisão. Para muitas, é ali que está a sua independência, porque quem não é economicamente independente não tem a liberdade garantida. Conheci mulheres que diziam: “Sei que ele pode, mas não quero depender dele”, e então vão à rua, de vez em quando, para terem o seu dinheiro. Embora possa ser polémico, também vi a opção pela prostituição como oportunidade de as mulheres terem o seu próprio espaço, de serem mais independentes do que seriam noutras profissões. Muitas prostitutas têm relações de grande dependência de homens (maridos, pais, outros familiares); mas, com os clientes, isso inverte-se, o poder é delas.
Quem são os clientes das prostitutas?
Na prostituição de rua, as características socio-demográficas dos clientes são similares às das prostitutas – baixa escolaridade, muitos provêm de meios rurais, embora possam ter algum estatuto socio-económico; são, enfim, homens como todos os outros, socializados como homens. E, numa cultura masculina, onde o sexo pago é um dos scripts sexuais possíveis, ao recorrer às prostitutas, um homem não faz mais do que reproduzir esse script. Assim, os clientes não são nenhuns pervertidos, são homens de todas as classes sociais, idades, estatuto civil e experiência de vida - os maridos, pais e irmãos de toda a gente. Os abolicionistas, que acham que a profissão é uma forma de violência sobre a mulher, chamam aos clientes “prostituidores”, porque, na sua óptica, a mulher é uma vítima passiva tanto do chulo como do cliente - a lógica é: se não houvesse clientes, não havia prostitutas. E fazem deles seres perversos. Nãosão.
Mas as relações entre prostituta e cliente são sempre isentas de afecto? É só sexo?
Não, não. A relação sexual comercial habitual é uma relação rápida e, por norma, desprovida de afecto. Mas, às vezes, pode haver sentimentos e emoções passíveis de serem concretizados. Muitas vezes, os clientes tornam-se habituais e começam a investir naquela relação, que passa a ser de amizade, de afecto e, caso a prostituta esteja disponível, pode até evoluir. Ou seja, apesar de, por regra, não haver afecto, é possível que ele exista. Tal como o prazer. Antigamente, definia-se a prostituição como a ausência de escolha e de prazer; quanto à escolha, já vimos que existe; quanto ao prazer, embora não seja algo facilmente admitido pelas prostitutas, percebe-se que algumas acabam por tê-lo com os clientes. Ora, isto é polémico: dizer que a prostituta é activa, que escolhe, e, ainda por cima, que o faz porque pode ter prazer sexual, é mais um tabu para o que se julga ser o comportamento sexual adequado a uma mulher... É mais fácil vê-las como vítimas, e não como sexualmente activas, porque o comportamento esperado de uma mulher não é aquele – é o recato, a manogamia, a fidelidade, ideias que estas mulheres, de algum modo, vêem contrariar.
Advoga a legalização da prostituição como profissão. Que benefícios é que resultariam daí?
Os sistemas legais relativos à prostituição são três: o proibicionismo, em vigor nos EUA e na China, em que são consideradas criminosas e punidas como tal; o sistema abolicionista, que existe em Portugal e na maior parte da Europa, em que, embora a prostituição seja tida como um mal a erradicar, as prostitutas são vistas como vítimas a serem ajudadas; e há o sistema regulamentarista, que entende a prostituição como actividade profissional a ser regulada tal e qual como as outras profissões. Na Holanda, por exemplo, vigora o sistema regulamentarista, em que o trabalho sexual é considerado uma profissão singular e que tem, por isso, um regulamento especial. O que defendo é que o trabalho sexual em geral, e o da prostituição em particular, seja uma profissão semelhante às outras, sem leis nem estatutos especiais – deve ser regulado segundo o Estatuto Nacional das Profissões. A vantagem será, desde logo, o reconhecimento dos direitos laborais a um grupo significativo de pessoas, que poderiam efectuar descontos para a Segurança Social, recorrer a um subsídio em caso de doença, além de questões mais práticas: ganham dinheiro e, no entanto, não conseguem um empréstimo à habitação por não terem uma folha de IRS para mostrar ao banco. São esses pequenos constrangimentos no dia a dia que podiam ser obviados. Além da violência nas ruas a que estão sujeitas e que, por vezes, não tem o melhor acolhimento da Polícia. Por exercerem uma actividade não reconhecida, é como se essas pessoas não existissem. Mas, talvez mais importante do que isso, contribuiria para a destigmatização, porque ao encarar o trabalho sexual como profissão, ao legitimar uma função que já existe, a tendência será vê-la menos negativamente. Porque o posicionamento ideológico de grande rejeição da prostituição leva a tratar as pessoas que a exercem como se não existissem.
Esse tratamento integra aquilo a que chama de “violência invisível”?
Claro. Há uma violência explícita e directa sobre os trabalhadores do sexo que se traduz em agressões físicas, roubos e insultos gratuitos; mas também há outra forma de violência não explícita, invisível, que se pode chamar de “violência institucional”. Ocorre, por exemplo, quando as pessoas se dirigem a determinados serviços e instituições públicas – de saúde, de justiça –, e são tratadas de forma diferente, com preconceito, quando são reconhecidas como trabalhadores do sexo. Isso faz com que se arredem dos serviços de saúde, por exemplo, porque têm a experiência de terem sido mal atendidos ou maltratados, especialmente os homens, os transexuais, porque nesse caso há uma espécie de triplo estigma – o de venderem sexo por dinheiro; de serem homens no corpo de mulher; e o estigma da homossexualidade. E isto é sentido no dia a dia. Quando vão levar um filho à escola, as prostitutas têm de esconder o que fazem por temerem que os colegas do filho o rejeitem, por exemplo... Tudo isto é uma violência, sentida por cada uma das pessoas que faz este trabalho e que, embora sabendo que não está a fazer nada de mal, percebe que toda a sociedade a rejeita. É essa a violência invisível a que me referia.
Todavia, parece que as prostitutas, embora tenham consciência dos seus problemas, não fazem muito por combatê-los, não se conseguem organizar. Porquê?
Há várias razões para a falta de envolvimento em movimentos cívicos por parte dos trabalhadores do sexo. Pelo facto de ser uma actividade não reconhecida legalmente, receiam a exposição, preferem resguardar-se. Mas em Portugal também há a ausência de uma grande tradição de associação e de movimentos sociais. Mesmo o movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais), o movimento feminista ou até o movimento de consumidores de drogas, que existem lá fora desde os anos 1980, só muito mais tarde surgiram em Portugal e com menos força. E, depois, cá não existe a perseguição às prostitutas na rua – a convivência com a Polícia é mais ou menos pacífica, o que também faz com que as pessoas não congreguem esforços para uma acção comum. Os estudiosos dos movimentos sociais dizem que é preciso uma ameaça exterior para levar as pessoas para a rua; se calhar, esta brandura com que se aplica a lei em Portugal não ajuda a que tenha surgido, até agora, um movimento. O que não quer dizer que não venha a suceder: no último 1.º de Maio, em Lisboa, um grupo de prostitutas juntou-se à manifestação dos trabalhadores, oito mulheres muito corajosas com cartazes a dizer que eram prostitutas e que queriam reconhecimento. Foi a primeira vez que aconteceu uma manifestação dessas em Portugal.
Acha que alguma vez será possível legalizar a prostituição em Portugal?
Acho que sim, porque no abolicionismo já estamos. Pior, só se fosse criminalizar os clientes, como na Suécia, com consequências trágicas para os trabalhadores do sexo; a proibição provou-se uma falácia - nos EUA continua a haver prostituição apesar de ser proibida. Portanto, a tendência será regulamentar ou considerar uma actividade profissional como as outras. E os sindicatos teriam, nisso, um papel importante, mas tanto a CGTP como a UGT se manifestaram contra a possibilidade de as prostitutas se sindicalizarem, alegando que não é uma actividade compatível com a dignidade humana; mas o papel dos sindicatos é defender os trabalhadores, independentemente da actividade que exercem; portanto, se há um grupo de pessoas que tem esta actividade e não tem os direitos reconhecidos, ninguém melhor do que os sindicatos para apoiá-las. Mas, para isso, era preciso que, primeiro, conhecessem melhor a realidade das pessoas que se prostituem, e depois que se despissem de preconceitos morais.