domingo, fevereiro 15, 2009

Um olho no burro e outro no cigano

José António Saraiva

O caso Freeport lançou uma verdadeira onda de pânico no mundo financeiro e empresarial.
Banqueiros como Ricardo Salgado ou Horácio Roque, que por norma evitam envolver-se em questões políticas, não se escusaram a fazer rasgados elogios a José Sócrates.
Muitos empresários que por norma apoiavam o PSD estão hoje firmemente ao lado do primeiro-ministro, cerrando fileiras para que se aguente.
Figuras que durante anos foram identificadas com a direita – Proença de Carvalho, Nobre Guedes, Freitas do Amaral, José Miguel Júdice – surgem a defendê-lo acaloradamente.
Como entender este afã?
Tudo tem a sua explicação. A direita não gosta de líderes fracos – e Sócrates surge hoje como um líder forte.
Sócrates criou um modelo de ‘política musculada’ que agrada à direita.
Por outro lado, ao pôr a mão debaixo dos bancos, criando a ideia de que não os deixará cair, Sócrates tem naturalmente os banqueiros consigo.
E quem tem a sobrevivência dos bancos na mão tem os empresários na mão.
Todos os empresários, nesta conjuntura difícil, dependem desesperadamente da banca.
Um banco pode hoje com facilidade determinar a falência de um empresário: basta que lhe aumente substancialmente os juros, corte as linhas de crédito ou exija a liquidação imediata de compromissos financeiros.
Nenhum empresário quer hoje afrontar o Governo – porque não sabe como reagirão amanhã os bancos com que trabalha.
Mas, ao mesmo tempo que controla superiormente a banca e através dela o empresariado, Sócrates pisca o olho à esquerda.
Pode dizer-se que o primeiro-ministro tem um olho no burro e outro no cigano: satisfaz os homens de negócios garantindo-lhes apoio do Estado – e satisfaz a esquerda ideológica com promessas ‘fracturantes’.
Apoiando os casamentos de homossexuais, facilitando o divórcio, defendendo o aborto, propondo amanhã – quem sabe? – a legalização da eutanásia, Sócrates vai dando rebuçados à esquerda, adoçando-lhe a boca.
Há nesta política um certo maquiavelismo.
Mas que importa, se obtém resultados?
A verdade é que os banqueiros e os empresários estão-se nas tintas para as posições fracturantes que o primeiro-ministro possa tomar.
Discordando provavelmente delas, levam-nas à conta de devaneios, de fantasias – que não têm importância porque não têm consequências económicas.
E a esquerda pensa o inverso.
Discordando dos apoios do Governo à banca e aos empresários, leva-os à conta de ‘pragmatismo’, de realismo necessário para calar a boca à direita e garantir a permanência da esquerda no poder.
Sócrates faz pois, neste momento, o milagre de agradar ao mesmo tempo a gregos e troianos.
À direita pondo a mão debaixo dos bancos; à esquerda com medidas vanguardistas em matéria de costumes.
Além da satisfação de sectores opostos, Sócrates construiu uma eficaz ‘estrutura de exercício do poder’.
Rodeou-se de um grupo de fiéis pragmáticos – Pedro Silva Pereira, Augusto Santos Silva, Armando Vara, etc. – que planeia a gestão política e estende os seus tentáculos a várias áreas (banca, empresas públicas, comunicação social) criando um sistema de condicionamento da opinião.
Muita gente tem hoje medo de falar com receio de represálias – e mesmo dentro do Partido Socialista isto acontece.
E há também chantagem e ameaças directas.
O ministro Augusto Santos Silva, fugindo-lhe a boca para a verdade, disse que gosta de «malhar» nos adversários políticos.
E – não tenhamos ilusões – não foi uma afirmação isolada: é esta a linguagem usada no círculo restrito do primeiro-ministro.
Vivemos um tempo que se pode classificar como de ‘democracia limitada’.
Sócrates construiu uma estrutura de poder que infunde receio.
Claro que isso também tem o seu mérito.
E em tempo de crise tem as suas vantagens.
Mas atenção: mesmo os que beneficiam deste estado de coisas devem perceber que é decisiva a subsistência de vozes livres.
Essas vozes, que hoje lhes podem parecer chatas e incómodas, serão amanhã as garantes da sua própria liberdade
Fonte: SOL - "Política a Sério"