quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Que amor de Salazar?

Artigo de opinião de Paula Sequeiros

Nem ineducáveis nem normais estúpidos.
Chega-se a pensar que possa haver algum problema com o aparelho (sou «antiga», ainda lhe chamo assim). Pasmo primeiro, revolta depois. É mesmo verdade, alguém se empenhou por vender na televisão um Salazar que afinal «era um amor de pessoa».
Quais rancores, quais ressentimentos! Sr. Professor, descanse: a mentalidade que durante tantos anos erigiu com uma barreira que lançava sombra sobre o país e o preservava na sua «humilde pobreza» e «recatada simplicidade» ainda está viva em alguns corações.
Um dos principais responsáveis pelo Portugal das pequeninas mentalidades fechadas, do «pobres mas honradinhos», do «orgulhosamente sós», do analfabetismo erigido a princípio moral, duma guerra sangrenta para prolongar a vida a um colonialismo serôdio, está perdoado.
Então ele não era, afinal, um galã? A vida solitária era apenas um (dos muitos!) sacrifícios que abnegadamente fazia pelo país. E como se sacrificou ele, que até deu o perfil para sobrepor ao recorte daquele país que era tão seu que as duas identidades se confundiam.
Irra, não nos confundam.
É insultuoso transformar uma personagem sinistra, o rosto mais visível do fascismo num amante cortês com ares de galã, ainda que decadente.
As gerações que se seguiram à queda do fascismo em Portugal ainda hoje estão, em muitos casos, a pagar o retrocesso e imobilismo históricos que foram perdurando em coisas tão lamentáveis e com marcas tão profundas: a falta de ensino pré-primário público, a relegação da mulher à figura ínfima da submissão e passividade, a promiscuidade entre poder político e a altas hierarquia da igreja católica - a ponto de não se perceber claramente quem usa o púlpito de quem - a persistente iliteracia da população mais idosa, o miserabilismo e a mediocridade elevados a padrões de heroísmo nacional, os direitos sociais a serem tomados por favores e benesses -distribuídos apenas pela generosidade de quem por nós vela com o cuidado dum pai estremoso - que quem dá o pão dá a educação...
O Ministro da Educação afirmava em 1934*, invocando não haver dinheiro suficiente para pôr toda a gente a aprender a ler que o problema se resolvia aplicando as mais modernas descobertas; pois que se sabia que

«a população escolar podia e devia dividir-se em cinco grupos, a saber:
1º Ineducáveis - 8%
2º Normais estúpidos 15%
3º Inteligência média - 60%
4ª Inteligência superior - 15%
5ª Notáveis - 2%


Será imaginável ver-se numa cadeia de televisão actual, de grande audiência, um programa que teça loas à vida (amorosa) de Hitler - e com isso lave a imagem dum déspota sangrento, devolvendo a dum conquistador a cheirar a sabonete Lux?
Com a memória e a história nacional pode-se brincar? Esquecemos a miséria extrema, a tortura, a perseguição política, o ferrolho nos jornais, as mortes e os danos da guerra colonial, o cinzentismo que envolvia os nossos dias e nos roubava o horizonte?
O Salazar desta série pode ter ido à manicure, mas não deixa por isso de ter as unhas sujas de sangue dos povos que espezinhou e fez tão infelizes.
Queremos ouvir História. Não nos contem essas historietas: não somos nem ineducáveis nem normais estúpidos!

* 25 de Abril: uma aventura para a democracia: manual do professor. Porto, Afrontamento, 2004., p. 52.
Fonte: Esquerda.Net