É com a devida vénia que o Diário de Felgueiras transcreve a presente peça jornalística, do semanário Expresso, da sua edição de hoje, que, a nosso ver, é o melhor texto sobre a polémica dos alegados pagamentos da Câmara de Felgueiras a autarcas e ex-autarcas arguidos do processo do "saco azul".
400
mil euros é a despesa com advogados que, de acordo com a oposição, a Câmara já gastou desde 1999. Nos documentos a que o Expresso teve acesso consta o primeiro requerimento de Fátima Felgueiras solicitando pagamento de despesas, um recibo do advogado brasileiro que a representou depois da fuga e um despacho que pretende ratificar uma decisão da presidente.
Fátima Felgueiras poderá enfrentar um novo processo de perda de mandato. Especialistas em direito autárquico ouvidos pelo Expresso são unânimes: a presidente da Câmara não poderia assinar as suas próprias despesas com advogados. Já em 2004, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) considerou que este acto configurava um impedimento. Só a 21 de Outubro deste ano é que a Câmara ratificou (através da maioria do movimento 'Sempre Presente') os pagamentos feitos de 1999 a 2001. O processo do 'saco azul' já custou aos cofres da autarquia 400 mil euros (80 mil contos).
A posição da autarquia felgueirense em assegurar as custas dos processos judiciais tem sido apoiada num parecer datado de 2003 da autoria de Mário Rui de Carvalho, professor na Faculdade de Direito de Coimbra. De acordo com este documento, ao abrigo do artigo 21 do Estatuto dos Eleitos Locais, a Câmara pode pagar as despesas com advogados, mas o dinheiro terá que ser restituído caso o autarca seja condenado, com sentença transitada em julgado, ficando provado um comportamento doloso.
E aqui é que reside uma dúvida: o pagamento é feito enquanto o processo decorre (presumindo-se a inocência) ou só depois da decisão final é que há contas a acertar? "Os tribunais têm considerado que o eleito deve suportar as despesas, e só no final, se não houver dolo, se procede à restituição", declarou ao Expresso Marta Portocarrero, docente na Universidade Católica. Já Edgar Valles, advogado e autor do 'Guia do Autarca', garante que no caso de Felgueiras as despesas com honorários devem ser assumidas pelos arguidos: "A norma da lei refere-se a situações em que é praticado um acto, como uma demolição, e alguém decide pedir uma indemnização à câmara e ao seu presidente porque se sente lesado. Como a demolição foi um acto praticado no exercício de funções, a câmara pode custear as despesas".
Para este especialista em direito das autarquias, Felgueiras acaba por ser um caso insólito: "Estamos perante a situação de alguém que terá prejudicado a Câmara com os seus actos, logo, a autarquia é ofendida. Mas, no fim, acaba por pagar as despesas a quem é imputada a ofensa. Isto não faz sentido".
"Desafio quem quer que seja a dizer-me qual é a Câmara do país em que um autarca com processos por causa do exercício do cargo paga as custas judiciais, incluindo os advogados, do seu próprio bolso", afirmou esta semana Fátima Felgueiras. O Expresso questionou Valentim Loureiro e Isaltino Morai, e ambos garantiram que assumem pessoalmente as despesas com advogados nos processos em que são arguidos e que envolvem decisões nas respectivas autarquias. Já Artur Marques garantiu ao Expresso que todos os pagamentos "cumpriram escrupulosamente o que a lei determina".
Seja como for, o grande problema para a autarca está no facto de ter ordenado pagamento às suas próprias despesas. Para José Fontes, Departamento de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Aberta, o caso de Fátima Felgueiras é claro: "O Código do Procedimento Administrativo prevê claramente um impedimento para os que tenham um interesse directo na decisão". Para lá do plano jurídico, José Fontes coloca ainda um problema de ética: "Acho que era de ponderar não ser a câmara a suportar os custos com os processos judiciais".
"Se essas decisões foram tomadas pela própria são inválidas", acrescentou Marta Portocarrero. "O autarca não pode pronunciar-se em actos que envolvam interesses pessoais", reforçou Edgar Valles. E esta situação, segundo a jurisprudência consultada pelo Expresso, faz incorrer o autor em perda de mandato, sendo que é necessário ainda que se prove que com essa condutahouve uma vantagem patrimonial para si ou para terceiros.
No processo 0248/04, o STA deixou claro que não basta uma simples decisão unilateral para decidir o pagamento de honorários a advogados. Para o Supremo, a questão deve ser discuti em reunião de Câmara "no sentido se apurar e deliberar se o processo tem ou não como causa o exercício de funções". Depois, "concluindo-se que despesas devem ser suportadas pela autarquia, importa discutir e aprovar montantes devidos e, por fim, deliber o seu efectivo pagamento".
Isto não terá acontecido nos últimos anos em Felgueiras. O que levou a que na reunião do executivo de 21 de Outubro, segundo adiantaram ao Expreso, João Sousa, líder do PSD local, e José Campos, vereador eleito pelo PS, Fátima Felgueiras tivesse levado à reunião a ratificação das despesas com advogados entre 1999 e 2001. "O PS e o PSD votaram contra", disse José Campos, considerando que se está perante um caso de perda de mandato.
Aliás, de acordo com vários documentos da autarquia, a que o Expresso te acesso, só em Janeiro deste ano é que Fátima Felgueiras deixou de assinar ordens de pagamento ao seu advogado, Artur Marques. A 22 de Janeiro, Fátima Felgueiras endereçou uma carta à Câmara pedindo que fosse pago o valor de 3100 euros relativo a despesas juciais. No dia seguinte, o actual vice-presidente, João Garção, acabou por admitir que há dúvidas se a presidente poderia despachar "em causa própria", sendo obrigado a ratificar um despacho de Fátima Felgueiras de Dezembro 2006 que ordenava pagamentos a Artur Marques. O procurador distrital Porto, Pinto Nogueira, já está na p0sse dos documentos e poderá abrir um inquérito-crime e um processo administrativo para perda de mandato.