domingo, abril 15, 2007

Salazar é que está a dar

Fonte: semanário "Expresso"





O homem não bebia, não fumava e era bem apessoado. Penteado de risco ao lado, gravata, um perfil adunco disfarçado pelas sombras do olhar, entre o manhoso e o matreiro, o sagaz e o perspicaz. Manhoso é matreiro e sagaz é perspicaz. Apliquem-se adjectivos de significado único e finjam-se distintos e múltiplos, foi esse o truque de Salazar. Havia um Parlamento, era dele, era um Parlamento. Havia eleições, eram dele, eram eleições. No tempo dele não havia escândalo nem corrupção porque não havia quem os denunciasse nem imprensa que os publicasse, a PIDE e a Censura vigiavam, e o salazarismo passou como um período ideal, autoritariamente ideal, em que os homens políticos eram limpos e defendiam o império, governavam e não se governavam. E aquilo dos Ballets Rose murmurou-se nos corredores e salões como uma anedota distante, tão distante como África e as histórias das mulheres dos sobas ou as lendas das cabeças empaladas dos pretos. Os canibais andavam por aí, nas casas grandes e sanzalas do Restelo, do Estoril, de Sintra, dos lugares chiques onde moravam os ricos e poderosos. E Portugal era grande, assente sobre um povo escravo e analfabeto, trémulo e rapado. Sem ofensa. Um Portugal construído sobre pilares de medo em que se temia tudo, o padre que arrecadava confissões e adultérios, o marido que batia na mulher, o vizinho do lado que era pide, o colega de escola que batia nos outros e carteava um trunfo de pai-ministro, o polícia que usava a farda para comprar fiado. E como todos eram muito pobres, comprava-se açúcar amarelo a prestações, e Omo, e marmelada, e iogurte, e bolachas torradas, luxos. A taberna não fiava. No país das meias-tintas calçávamos meias-solas fiadas no sapateiro, e a vida era vivida a prestações e cobrada aos fins de mês, a data histórica do ano. Ao-fim-do-mês-pago, e as criadas contavam das patroas que dormiam com os credores para adoçar a dívida, uma prostituição muito consentida visto que as mulheres, naquele tempo, ou eram mães ou eram putas. As que não casavam era freiras ou madrinhas-de-guerra. As do regime eram do Movimento Nacional Feminino, instituição de caridade montada com laca de cabelo. As mães mandavam os meninos para a guerra nas colónias em barcos imensos e recebiam cabogramas anunciando a morte. Mais as lágrimas do Natal do Soldado que eram espectáculo de televisão. Para as minhas mulheres, mães, madrinhas, noivas e demais família um Natal muito feliz e com muitas propriedades. Os mais letrados riam-se muito dos soldadinhos de chumbo, broncos que nem sabiam soletrar prosperidades. O povinho era assim e não se lhe podia dar o voto, acabaria por estragá-lo, Deus e o Cardeal Cerejeira nos livrem. Os valentes soldados Silvas nunca mandavam propriedades para as filhas porque não tinham chegado a tê-las, rapazes de mama atirados para o mato com uma espingarda nas mãos por amor à pátria. A pátria devolvia o cadáver. Os que morreram nem chegaram a saber por que tinham morrido. E os que não morreram e ficaram sem olhos, sem mãos, sem pernas, sem juízo, nunca chegaram a ser lembrados pela pátria madrasta. As mães e viúvas de negro choravam nas campas dos cemitérios de aldeia, os homens tiravam respeitosamente o chapéu, e depois tudo se sepultava no esquecimento. Os filhos dos ricos e dos poderosos eram «dispensados» da tropa, e os filhos da burguesia fugiam para os cafés de Paris e o «estrangeiro». O fascismo nunca existiu. Alguns deles, alguns, foram dar com o rabo sentado na selva e começaram a perguntar: que faço eu aqui? Alguns deles tiveram a coragem de fazer uma revolução. Salazar morreu no conforto da cama e da manta e da governanta antes de constatar a heresia do 25 de Abril e o cheiro dos cravos. Os herdeiros foram para o Brasil dar aulas na universidade e os pides foram recuperados para a sociedade porque somos assim, um país de brandos costumes onde nunca há mortos e feridos e ninguém há-de escapar. A guerra de África? Aquilo era lá longe, e não havia televisão, nem fotografias, nem relatos dos massacres. Nem liberdade. E Salazar é que sabia, Salazar é que mandava. Nas escolas, nós, servos descendentes de reis e heróis do mar, de padeiras e assassinos, de sonhadores e magos, nós Pessoas geniais iguais umas às outras, gritávamos obedientes, Salazar, Salazar, Salazar! De mãozinha esticada. Aquilo fazia lembrar Hitler e a II Guerra de que o chefe nos tinha defendido, a honra de não ter combatido o nazismo com os Aliados e ter jogado com um pau de dois bicos, o coração nas Potências do Eixo, a cabeça na geografia atlântica. Era preciso poupar o cais e o apeadeiro chamados Portugal. Arlequim que serve a dois amos, eis a essência da nossa alma. E Vocelências que me desculpem, que já vou saindo desta crónica de cachaço rente ao chão e pela porta de serviço. Sem ofensa.



Nota: Vai estrear no Villaret um Salazar, the Musical e a Casa de Garrett, o Teatro Nacional D. Maria II, vai estrear a 24 de Abril uma peça de um dramaturgo de Badajoz que teve a sua primeira encenação em Idanha-a-Nova chamada Férias com Salazar. Ou coisa assim. Como o livrinho da Garnier. Espero que se divirtam e vendam muitos bilhetes. Aproveitem que isto é que está a dar.