domingo, novembro 19, 2006

Na morte de Mário Sottomayor Cardia

Opinião


por JOSÉ LEITÃO (*)


(Católico, socialista democrático e republicano,
defensor de uma Nação solidária e cosmopolita e de um Estado laico).







José Leitão

A morte do camarada e amigo Mário Sottomayor Cardia apanhou-me, de surpresa.Conheci-o no início dos anos 70 e durante cerca de dez anos partilhámos muitos combates pela consolidação da democracia e pela afirmação do Partido Socialista, designadamente na redacção do “Portugal Socialista”, que era publicado como jornal semanal do qual era director nessa época e em cuja redacção participei no período pós- 25 de Abril.

Jovem socialista de formação católica tive sempre diálogos muito interessantes com ele, que vinha do marxismo e o seu livrinho “Por uma democracia anti-capitalista” foi uma referência ideológica fundamental. Admirava-o pela coragem física e moral e pela sua preocupação com o diálogo. Recordo-me de um debate que organizei na Juventude Universitária Católica, antes do 25 de Abril, sobre o marxismo, em que ele dialogou com o Padre Manuel Antunes e no qual abriu perspectivas para um marxismo crítico e não dogmático, de que conservo algumas notas.

Quero aqui deixar registados dois momentos de combate político, em que estivemos lado a lado. Faço-o também porque são episódios significativos, que muitas vezes são esquecidos.

Poucos saberão que foi o Mário Sottomayor Cardia, nessa altura um dos mais influentes dirigentes do Partido Socialista, que promoveu a sua autonomização eleitoral no pós-25 de Abril e impediu que tivesse sucesso a estratégia que pretendia levar o PS e o PPD a apresentarem-se às eleições para a Assembleia Constituinte em listas do MDP/CDE.

Vale a pena ler o que sobre este episódio escreveu Mário Sottomayor Cardia sobre o título «Em torno da génese da lei eleitoral» no “Portugal Socialista” n.º228.º, de Abril de 2003, pp.46-49. O MDP/CDE tentava então apresentar-se como uma frente de partidos democráticos. Para além do PS e do PCP, que o tinham integrado antes do 25 de Abril e de outras organizações, o próprio PPD, que tinha sido formado em Maio, também tinha aderido.

O que parece hoje óbvio não o era nessa altura. Em Agosto de 1975 apresentei na direcção do MDP/CDE uma proposta, redigida pelo Mário Sottomayor Cardia, no sentido de que o MDP/CDE não patrocinaria candidatos às eleições constituintes no ano seguinte. Esta proposta foi tacitamente rejeitada, pelo que me demiti da direcção do MDP/CDE, acompanhado por mais dois camaradas do Partido Socialista. Em 28 de Agosto, o Secretariado Nacional do Partido Socialista veio denunciar como inaceitável este projecto, tendo sido seguido pelo PPD.

Se não tivesse havido este separar de águas o Partido Socialista nunca teria chegado a afirmar-se como o primeiro partido português. Devemos isso à lucidez e à coragem política do Mário Sottomayor Cardia.

Houve outras batalhas que travou com outros camaradas que tiveram também na génese uma visão libertadora do socialismo democrático. Foi o caso do voto de sete deputados socialistas contra a proposta de Lei n.º71/III (Segurança Interna e Protecção Civil), em 26 de Julho de 1984, apresentada pelo governo do bloco central (PS/PSD) liderado por Mário Soares e que era para alguns de nós uma lei inadequada e liberticida, que violava a Constituição da República. Foi uma decisão de consciência, nomeadamente, dos deputados Mário Sottomayor Cardia, Manuel Alegre, Margarida Marques, Eurico Figueiredo, Edmundo Pedro, eu próprio, votarmos contra a Lei de Segurança Interna, que teve o seu custo político com a exclusão de alguns de nós das listas para deputados nas legislativas seguintes. As intervenções de Mário Sottomayor Cardia sobre este diploma podem ler-se no seu livro “Prosas sem importância 1978-1984”, Editorial Presença, 1985, pp.212-218.Mário Mesquita saudou este voto contra no dia seguinte no “Diário de Notícias” num editorial, intitulado “Afinal o Parlamento existe”.

Refiro este último episódio para sublinhar que Mário Sottomayor Cardia não se bateu apenas com coragem contra o salazarismo e o caetanismo, mas também no pós-25 de Abril e inclusive no interior do Partido Socialista.

Mário Sottomayor Cardia não foi apenas um militante e dirigente político, foi um intelectual e um académico, que evolui do marxismo crítico para um racionalismo exigente.

Não quis deixar em silêncio o seu contributo decisivo em muitos momentos para a democracia em que vivemos. Há muito trabalho a fazer pela nova geração de investigadores para conhecerem bem esse período. Não devem esquecer a advertência de Bertolt Brecht «César conquistou a Gália/ Não teria levado ao menos um cozinheiro?».

Se estudarem bem esse período, perceberão o enorme contributo de Mário Sottomayor Cardia.

(*) Advogado e Alto Comissário para a Imigração
e Minorias Étnicas

"INCLUSÃO E CIDADANIA"