Humor
por Marco Geodésico
Lá encontrei, no evento, os velhos amigos de sempre – praí uns trinta Irmãos –, que, ao longo da história, têm sido (mas nem todos!) verdadeiros zeladores da coisa religiosa. Compareci com uma cópia da convocatória posta a circular nos jornais e logo murmurei para com um Irmão, ainda meu parente, perguntando por que não tinha sido incluída na Ordem de Trabalhos a questão dos terrenos que uma devota mas desavinda Irmã anda praí a dizer que é dela. O meu parente pôs-me de sobreaviso: “- Temos que ser pragmáticos, primo!Toda a direcção, na reunião preparatória, combinou não levantar a lebre, de maneira que o assunto só virá à baila se alguém se atrever a falar”. Contrapus: "- Já contraste alguém para o fazer ou vais esperar que seja eu a prestar-me a esse papel, seu cobarde?”. O meu parente acalmou-me: “Sossega, primo, sossega, que eu já falei com uns tantos Irmãos para falarem, agora, na assembleia”. Perguntei: “- A quem e a quantos?” O velhaco do meu parente emitiu um sorriso solene, de superioridade: “- A quem não interessa, mas já avisei 29 Irmãos”. Atestei eu então uma gargalhada, silenciosa, apenas sonora no meu íntimo, e concluí tão óbvio pensamento: “A todos, menos o juiz da Irmandade, seu reguila!”.
A assembleia-geral lá começou e eu já ia trincando a língua com aquele nervoso miudinho de quem está mortinho por falar mas, quase a rebentar os alvéolos pulmonares, a sofrer muito pelo ar das palavras contidas nas cordas vocais afónicas. Vi toda aquela gente acabrunhada, a disfarçar que não havia problema algum, e ele - o problema - lá estava, dentro daqueles homens tolhidos pelo medo de terem medo. Aliás, eles eram e são - a maior parte deles - o próprio problema. Mas que coisa, meu Deus!... Mas que coisa!
O juiz lá estava todo escarrapachado na mesa, a coordenar os trabalhos da reunião. Quase toda a direcção esteve presente, excepto um tal cabeleireiro. O meu amigo Valentim, também, faltou, mas até já nem sei se é dirigente, ou não. Lá estava, também, o pároco da cidade, que entrou mudo e saiu calado, não obstante ter sido provocado para falar. Lá se terá lamentado, no seu íntimo: "Pra que terrinha o bispo me mandou! Não é melhor do que a minha, que já se livrou das garras do Avelino!"
De repente, ouço um homem magro, de firme convicções, a levantar a questão: "Não há Machado que corte a raiz ao pensamento!”. Abençoado homem, com parentescos episcopais! Depois, um outro Irmão - um esgrouviado atleta -, até citou a Sagrada Escritura, na parte que toca a S. Lucas, para reforçar a sua argumentação: “Os primeiros hão-de ser os últimos e os últimos hão-de ser os primeiros”! Ah, grande homem!...Ah, citação profética e apocalíptica de Lucas!... Ah, piadista, que não te referias à questão em concreto mas a um assunto que eu cá sei… Alguém ainda falou que alguém teria de ser expulso (da santa Irmandade), cometendo o atrevimento de remeter o assunto para a autoridade eclesiástica presente. "Ba cá toma, só me faltava essa!..." - terá pensado o padre.
O pequeno sururu já estava instalado quando um Irmão percebido de leis esclareceu todos os presentes. E falou que usucapião não se aplica ao caso. E eu pensei que usucapião era o nome de alguém! E afinal é um termo jurídico! E é curioso como todos se portaram: seguiram em fila o pensamento do homem como um rebanho de ovelhas. E ainda bem! E o que me faz rir, cá no meu íntimo, é a hilariante atitude das massas humanas sobre estas coisas que mexem com o poder. E basta um ou dois dar o tiro de partida para todos seguirem em marcha. E dez minutos antes, os acabrunhados esfregavam o rabo nas cadeiras, para a esquerda e para a direita para não verem nos olhos do próximo a questão pertinente. E o ilustre homem de leis lamentou o facto de a Irmandade não ter pedido em tribunal uma providência cautelar. E, de facto, tem razão. E de que estava a espera a confraria? Que caíssem landes da árvore do poder? E, mesmo assim, mais à frente, da mesa veio uma piada, a propósito de um procedimento que até nem vem ao caso, dizendo: “Já passaram por aqui (pela liderança da confraria) muitos doutores”. Pois!... O ninho das toupeiras acabava de ficar estragado!
Toda a exposição do Irmão percebido de leis foi brilhante. Se assim não fosse, tenho a certeza que os 28 Irmãos, não contando comigo e com o juiz, acabavam por andar à batatada verbal e o assunto morreria sem uma definição estratégica de defesa por parte da Irmandade. Decidiu-se, e muito bem!... Deus ajude quem não se deixa galar! Alguém, que estava sempre a deitar água na fervura nas críticas à Irmã, disse que seria melhor ir falar com ela no sentido de ceder na sua injustificada teimosia. Alguém respondeu: "Ela não gosta de voltar atrás" . No entanto, alguém cá fora, já na Alameda, disse: "Não é bem assim. Ela fugiu para o estrangeiro e, depois, acabou por voltar atrás!"
Depois, até ao final da assembleia, houve coisas do arco-da-velha, hilariantes: houve, por exemplo, quem informasse que, ainda recentemente, aquando de um casamento na igreja de Santa Quitéria, todos os automobilistas convidados para a boda foram multados pela Polícia Municipal, por terem estacionado os veículos na Alameda, reivindicada pela Irmã desavinda. Uma boa maneira para minimizar a bancarrota!
O Irmão Silva, que já é tido como testemunha indicada pela causa contrária, fez um rasgado elogiou à Irmã desavinda, mas acabou por ter uma intervenção muito caricata: começou por apresentar mil explicações a favor da causa contrária, dizendo que a Alameda tinha que estar encerrada ao trânsito… e acabou dizendo que esse encerramento “é um absurdo”.
“Se ela quiser, até tiramos do altar
a imagem de Santa Quitéria
e pomos lá a imagem dela!”
- disse um Irmão.
Um outro Irmão, mais novo na idade, muito revoltado com a Irmã desavinda, cometeu a maior heresia da tarde, mas Deus há-de perdoar-lhe, pois enorme é o desespero de um homem quando o querem usurpar. Disse o nosso Irmão, muito ironicamente: “Se ela quiser, até tiramos do altar a imagem de Santa Quitéria e pomos lá a imagem dela!”. Essa foi forte, meu!... Entre os presentes, alguns mostraram a sua revolta pelo artigo de opinião do Edu Teixeira no Diário de Felgueiras sobre a matéria em questão. De que estavam à espera? Que dissesse que o terreno não é deles (da confraria)?!...
Finalizando, não poderíamos deixar de registar, aqui, a intervenção de um importante Irmão, que disse: “Estou a ser vítima de perseguição dos blogues, quando dizem que estou a ser macio” com o poder, entenda-se! Falou que a sua atitude sobre o caso nada tem nada a ver com o emprego do filho, dizendo, a propósito: “Ele não há-de morrer à fome”. Pudera, com tanta carne! Por fim, negou qualquer envolvimento com a Irmã desavinda, rematando: “A única coisa que fiz, até hoje, quanto à senhora, foi ter ido à barraquinha assinar” a propositura para poder concorrer às eleições. Bá cá toma, Irmão!
E foi assim que se passou uma tarde de domingo, em que as nuvens de Novembro são o reflexo das ideias cinzentas que cobrem os céus de Felgueiras.