quinta-feira, agosto 24, 2006

Vasco Carvalho - morte de um grande senhor

Vasco Carvalho


Aos 97 anos, faleceu ontem, 23/8/06, Vasco de Carvalho, antigo Secretário Geral do PCP, grande personalidade do movimento comunista e do movimento cooperativo. Nos anos 40, numa situação de graves dificuldades políticas e de enorme vulnerabilidade aos golpes da polícia, Vasco de Carvalho assume a liderança do PCP, para ser mais tarde afastado durante a reaorganização dos anos 40. Um processo de grandes enfrentamentos, de desconfianças e mesmo de prováveis provocações policiais, levou a seu afastamento das responsabilidades partidárias, mas manteve-se fiel à ideia comunista, pugnou pela sua renovação e dedicou-se ao movimento cooperativo, onde foi uma das mais influentes figuras ao longo do século XX.
in Renovação Comunista
Texto de Paulo Fidalgo aquando da
Homenagem a Vasco de Carvalho
pelo Museu da Resistência e da República
Foi com emoção que a sucessão de oradores desfilou nos elogios ao camarada Vasco de Carvalho durante a singela homenagem promovida, em 25/06/05, no Museu da Resistência e da República.


A tragédia de Vasco de Carvalho enquanto obreiro comunista de uma sociedade nova evoca, tal qual Bukharine o grande bolchevique, um dia disse, à beira do seu fuzilamento a mando de Estaline, que “a bandeira rubra que transportais leva nela gotas do meu sangue”. Neste caso, a construção comunista em Portugal transporta também um imenso rol de sofrimentos e dramas onde não pontificam só os golpes do adversário de classe. Pontificam igualmente os choques e contradições entre agentes concretos da história, convencidos com as certezas que a arrogância e o sectarismo tantas vezes conferem. Convencidos portanto que um projecto impreciso e cheio de contingências como é a invenção do futuro, teria afinal um formato acabado e definitivo onde não caberiam dúvidas nem soluções diferenciadas. Tal era a aragem de realismo que vinha do «socialismo estatal» da URSS de Estaline.


Pacheco Pereira, um conservador sem qualquer indulgência para com as ideias comunistas, mas com um saber autorizado sobre história do movimento operário, disse na sessão de homenagem que estava pesadamente crivado de tensões o contexto da crise que levou à reorganização dos anos 40. E levou à defenestração da direcção, onde Vasco de Carvalho era o primeiro responsável, de resto com toda a legitimidade formal vigente nos procedimentos electivos do PCP.


Estava marcado pelo controlo estrito da Internacional do qual o PCP era uma secção, pelas purgas na URSS, o ascenso do fascismo no mundo e foi, especialmente, marcado pela conduta da URSS no pacto germano-soviético, vertido depois para a táctica da Internacional com a sua posição, no mínimo, de equidistância entre Hitler e as democracias burguesas.


A viragem tacticista – no sentido em que abdica de uma ligação estreita a objectivos transformadores por troca com vantagens de conjuntura - de Estaline, rompeu abruptamente com toda a condução do VII Congresso da Internacional onde tinha sido lançada com enorme sucesso a linha das frentes antifascistas. A ruptura percebida como golpe na construção de uma política unitária de resistência e combate ao fascismo mergulhou os comunistas em todo o mundo numa profunda crise e, nos confrontos da reorganização dos anos 40, pesou certamente esta confrontação na arrumação dos grupos.


Foi notório – e não há razão para pensar que a história escrita por Pacheco Pereira neste domínio seja para duvidar - por outro lado, o peso das denúncias de ilícito político e de infiltração policial com que o grupo vencedor conduziu a sua argumentação contra a direcção legítima de Vasco de Carvalho. Tal como em tempos bem recentes, a discussão nos anos 40 do século XX, substituiu o confronto de teses políticas pelos choques pessoais e pelo levantamento de suspeições de traição ou de provocação do «inimigo de classe» e da polícia.


A acusação pelo grupo vencedor da reorganização de 40 aos camaradas da direcção Vasco de Carvalho, de serem provocadores infiltrados pela polícia política, é uma das páginas mais negras da luta política em Portugal. Assim como a sua expulsão do PCP.

Por isso, a homenagem reabilitadora agora efectivada é uma muito tímida reparação ao papel heróico de quem, nas mais adversas condições, foi capaz de manter um mínimo de ligação e organização entre os militantes e as organizações clandestinas. Nem o ridículo das acusações prosseguirem aquando da prisão pela PIDE de Vasco de Carvalho e de outros dirigentes, fez a calúnia recuar. E os camaradas que então arrostaram com a mais negra das infâmias, nunca conseguiram alcançar condições mínimas para se defenderem. Só recentemente e de passagem, Álvaro Cunhal assumiu o erro de como foi o chamado «grupelho provocatório de 40» tratado naquela época.

Contribuíram para tão kafkiano ambiente as sucessivas quedas de dirigentes nas mãos da polícia e a própria queda da tipografia do «Avante». Porventura, por graves insuficiências de segurança com que se defrontava o PCP na época. E também, disse-o Pacheco Pereira, por infiltração policial em dois elos concretos bem identificados hoje: o comité local de Lisboa e a estrutura de direcção no exterior.

Na homenagem, para além do enaltecimento da figura heróica de Vasco de Carvalho e dos muitos camaradas caluniados pela agressividade da luta de grupos e pelas contradições do campo comunista, apenas se deu relevo aos episódios e peripécias de tal afrontamento. O único momento de alguma reflexão política apareceu com a evocação dos contextos das vésperas da segunda guerra mundial.

Não dispomos por isso de informação sobre a natureza ideológica e de projecto que eventualmente poderiam explicar as dissensões também. Só podemos por isso especular em torno da natureza mais estrutural que poderia subjazer a tal drama.

Foi por exemplo notório, no desenrolar da homenagem, a ênfase dos oradores no impressionante currículo de cooperativista de Vasco de Carvalho. E da sua amizade e convívio com António Sérgio, por muitos considerado o patrono do cooperativismo português.

Sublinhou-se, de passagem, a ideia de um modo de produção cooperativo como caminho possível para orientar a edificação de uma nova economia. Entre cooperativas, uma expressão que contêm associado um conceito jurídico de propriedade, e modo de produção cooperativo que, independentemente da forma jurídica, contém uma aplicação no controlo pelos produtores associados do produto excedentário originado no processo produtivo há, com certeza, um certo colapso que pode originar ambiguidades. Cooperativas e modo de produção cooperativo não são exactamente a mesma coisa, embora possam de facto sobrepor-se.

Quando falamos do modo de organizar a produção e as relações de produção segundo uma modalidade cooperativa estamos a usar uma expressão sinónima de comunismo ou sistema comunitário. Não estamos necessariamente a fixar a relação jurídica de propriedade que se costuma ligar à ideia de cooperativas. Ora, o que é central ao conceito de cooperativa e por maioria de razão ao modo cooperativo de produção é o controlo laboral (pelos próprios produtores) da riqueza produzida.

Se bem que os ventos de Outubro de 1917 trouxessem a brisa cooperativa na agricultura, percebeu-se muito cedo o deslize progressivo do modo de produção na URSS para um patamar de capitalismo de Estado. Entende-se por capitalismo de Estado aquele modo de produção que é dominado pelas categorias económicas do capital, como acumulação de excedentes e manutenção estrita do assalariamento dissociado do valor dos excedentes, controlados pelo Estado e pelo governo. Os níveis de alienação do trabalho mantêm-se muito elevados, tal como no capitalismo privado, excepto quando vigora uma intensa mobilização ideológica.

O que aconteceu nos anos trinta em diante é que o movimento comunista substituiu progressivamente as ideias de socialismo reapropriador do sobre-produto, desde sempre nucleares em Karl Marx e Lenine, por um conceito de capitalismo de Estado. E nem sequer o colocou no plano de uma etapa forçada num processo de construção multi-etapas. Pura e simplesmente fez do capitalismo de Estado um sinónimo de socialismo.

Durante décadas, como sabemos, o capitalismo de Estado parecia uma resposta eficaz a tarefas inadiáveis de desenvolvimento, de regeneração nacional, e por isso foi esmagadora a sua vitória no campo comunista. Mas a ideia de um socialismo reapropriador continuou a ser empunhado por muitos e no caso presente, ele é central à ideia cooperativa que Vasco de Carvalho abraçou na sua vida. É de admitir que a tensão entre reapropriação e controlo estatal dos excedentes arrancados ao trabalho assalariado nunca tenha sequer sido verbalizada como tendência de pensamento estruturada nos choques da reorganização de 40. Mas pelo percurso de Vasco de Carvalho, e pela hostilidade que o PCP moveu a muito do seu trabalho no movimento cooperativo e, depois do 25 de Abril, na Associação dos Inquilinos, é mais do que notório que entre o comunismo de Vasco de Carvalho e comunismo pensado na Soeiro Pereira Gomes vai uma grande distância.

Assume por isso uma enorme relevância para a causa da renovação do projecto comunista a homenagem a Vasco de Carvalho. Não é apenas, e muito significado teria se apenas o fosse, uma reparação dos prejuízos morais e pessoais que vitimaram o nosso camarada. É muito mais do que isso! É recolocar no centro da agenda comunista a discussão fulcral do projecto, do que queremos fazer, para onde queremos ir e de como imaginamos ser possível edificar um mundo novo.
Paulo Fidalgo
Nota do editor:
Vasco Carvalho, expulso do PCP, em 1940, por suspeitas de "traição", "provocação" e "por ser um infiltrado da PIDE", foi reabilitado em 1997... 57 anos depois!