Anabela Melão
Jurista
Jules Renard
disse “Não despertes o desgosto adormecido”. Em tempos de crise, segundo o
nosso Primeiro, geram-se grandes oportunidades. Diria que se geram, também,
grandes oportunistas.
A latere das
contas públicas , que resvalam – lembre-se que a Unidade Técnica de Apoio
Orçamental detetou uma “incorreção” nas contas que resulta na diminuição das receitas com os impostos indiretos
de quase o dobro da indicada pelo Governo – mas sempre com reflexos diretos
nestas, o Tribunal de Contas surge como principal protagonista da novela das
Parcerias Público-Privadas, dizendo-se enganado. De entre os juízes
conselheiros que se apoquentaram com a correção dos negócios sujeitos a visto,
nos anos em que fui auditora no TC, só Carlos Moreno se insurgiu na matéria.
Foi uma voz inoportuna. Como tinha sido “inoportuno” quando foi Inspetor-Geral
de Finanças. Nem na IGF nem no TC lhe fizeram a vida fácil e foi sempre visto e
tratado como um outsider o que fez com que, pessoalmente, tivesse acerca dele a
melhor das impressões. O futuro confirmaria quem se preocupava com o quê,
porquê e quanto! De nada vale virem os restantes armarem-se em virgens
ofendidas quando nunca tiveram com ele nem voz nem postura solidária. Se há um
herói, um paladino, no caso, é mesmo só Carlos Moreno. A sua formação pessoal e
a sua preparação profissional assim o ditaram! Fosse ele o Presidente do TC que
quanto incomodaria o status quo vigente e as madonas regaladas no conforto das
suas chaises-longues! Podia ser um dia alguém como ele o Presidente? Muito
teria este País de mudar! Muito teríamos nós de mudar! Mudarem os critérios de
escolha e de nomeação, desde logo!
Sobre isto muito haveria a dizer, mas do pouco que importa,
aqui e agora, dizer, saliento o seguinte. O Tribunal de Contas, de quando em vez,
vem a lume, ora denunciar ora criticar esta ou aquela área da res publica, sem
que nada nem ninguém lhe dê ouvidos. Desde o fenómeno da proliferação
desmesurada das empresas públicas e municipais, em
que não teve mão, até ao mais recente quadro censurado das SCUT. Um ano depois
da introdução das primeiras portagens é possível concluir que a renegociação
das PPP para o efeito só serviu interesses dos concessionários e dos bancos,
revertendo o ónus, por inteiro, para o utilizador-pagador. "Que
diabo se faz no Tribunal de Contas? – perguntou Carlos. – Joga-se?
Cavaqueia-se?” e Taveira responde ” - Faz-se um bocado de tudo, para matar
tempo… Até contas!” (‘Os Maias’, Eça de Queiroz, 1888, passagem do diálogo
entre Taveira e Carlos Maia).
Quem nomeia o Presidente do Tribunal de Contas? Um “tribunal”
independente? Sê-lo-á no texto da lei! Como o são outros organismos e serviços
que dizem sê-lo mas cujos dirigentes máximos dependem do fator “confiança
política” para a sua nomeação. E não se trata de um comentário visando este ou
aquele presidente ou dirigente, trata-se de uma constatação genérica! Querendo
pegar em quem manda em quem ou em quem influencia quem, que se chame os bois
pelos nomes!
O “desespero
é desperdiçar as oportunidades”, dizia Richard Bach, autor de “Fernão Capelo
Gaivota”, talvez tenha chegado a hora de percebermos que o desespero atual pode
mesmo ser uma enorme (e não desperdiçada) oportunidade. Começando por nos
perguntarmos onde está A Falha? O que Falha? Quem elabora as leis que regem o funcionamento
das instituições de supervisão e de controlo das contas públicas? Quem as
elabora quer mesmo que o sistema vigente se altere?
O “desgosto
adormecido” é aqui irmão do desespero, mas bem eu poderia ser o pai da
oportunidade. Não do oportunismo. Mas da oportunidade. Tempo de irmos ao fundo
da coisas, à raiz do mal, ao cerne do problema.
Porque não
foram os famosos anexos/contratos adicionais sujeitos à fiscalização prévia do
TC? Porque a lei permitia que não o fosses. A permissividade do Código dos
Contratos Públicos, redigido pelos maiores escritórios de advogados que se
abonam em proveito próprio como consultores e litigantes dos interesses dos
concessionários que se alimentam das tais receitas, como vampiros que nos sugam
o pouco sangue que nos resta em tempos de pobreza, a isso levou. Porque foi o
Estado permissivo a legislar, confuso a disciplinar, dúbio a regular? Porque os
interesses de poucos se insurgiram ante o interesse de todos. É que poucos
arrecadam as fabulosas receitas provindas dos desastrosos contratos que
políticos menos preparados e conscientes assinaram de cruz (ou talvez fosse até
uma atitude ponderada mas não no interesse público) mas todos pagamos o elevado
custo da fatura. E, a circunstâncias atuais, pagamos do que já não temos.
Foi já
acordado o desgosto adormecido! O desespero instala-se! As aves de rapina
alongam as suas asas oportunistas! E o que sobra somos este povo desanimado,
desalentado e de braços caídos. Quando é o Tempo de acordar? Amanhã, estou
convicta, “Não haverá mais tempo.” (Apocalipse X-VI).