(Especialista em Ciência Política)
Ensaio sobre Alexandre Herculano
I CAPÍTULO
Alexandre Herculano - o Liberalismo como vocação
O título alude à concepção weberiana de “Beruf” e insinua que vou tomar o Liberalismo prioritariamente como um “ethos”, ou mesmo uma ética empreendida num dado tempo e lugar, por alguém ou por um grupo, e suas consequências sociais objectivas.
Não falo de” política como vocação”, pois não creio ter sido essa a chave da conduta do autor. Ele nem se posiciona mesmo naquele patamar a que o neo-weberiano R.Aron chama o do “conselheiro do príncipe”. Ele desenvolve a sua acção como arauto de outros conselheiros, tentando transmitir à Europa, e em francês, a gesta do reformador Mouzinho da Silveira como seu arauto e garante de que a falta de modos do seu soberano D. Pedro, que, ciente da fustre educação recebida, foge ao convívio dos notáveis; é virtude dissimulada.
Disse arauto.
Um arauto a seu modo mais temível do que os que se limitavam a desenrolar um papel ou pergaminho, pois ousa atacar os mitos fundadores que a nação tinha há muito por inquestionáveis.
Declara que o milagre de Ourique não tem qualquer base histórica.
E como se não fosse pouco negar o pilar sagrado que até aí dera um sentido “cristão” à fundação do reino, desembaraça a memória colectiva da Grei do seu principal mito humano, as “cortes de Lamego”, tão laboriosamente contrafeitas durante o domínio dos Filipes, mas cujos propósitos e cláusulas patrióticas, justificavam as pretensões miguelistas, face à ”traição” do “grito do Ipiranga”
Hoje sabemos que esse acto de D. Pedro era o único que poderia salvar a pele dos portugueses partidos com o então príncipe D. João VI e sua mãe mentalmente enferma, mas, nos anos 1820, seria impossível convencer o país desses “ventos da História”.
A Igreja tremeu, apesar de a Carta e o hino a consignarem como a “nossa santa religião”, e da intolerância religiosa das autoridades face aos presbiterianos e outros protestantismos até, de facto, o Estado estendia o seu braço protector à Igreja, sabendo que essa era a melhor forma de controlar os seus movimentos. Ela era uma culpada, cujo interesse para o Estado se atinha mesmo à sua docilidade, táctica seguida até 1910, e que a debilitou, o que era o desiderato.
Com Pio IX, o Syllabus, e o dogma da infalibilidade, a coisa tremeu, tanto mais que tendo o bispo de Viseu se oposto muito ostensivamente à novidade, a única solução foi nomeá-lo ministro, para que Roma não exigisse um afastamento, sem ter em conta as antigas, e sempre ressurgidas, peculiaridades da “Nossa Santa Igreja”.
Alexandre Herculano afirmou-se então Católico Velho.
Na Alemanha as medidas papais foram tomadas a sério, com cisões, embora os obedientes guardassem para si reservas, nunca tendo aceitado uma pretérita ida de um Imperador a Canossa, que tornara ingovernável e condenado a termo, o primeiro sonho de unidade alemã.
Em Portugal tudo se fez para que se considerasse que era preciso dar um desconto a tudo o que se classificava como ultramoderno. A maior ameaça ultramontana era não tanto o longínquo bispo de Roma, mas, aqui e agora, a Rainha D. Maria Pia de Saboia, apesar de filha de Victor Emmanuel e contra as expectativas que tinham animado o seu liberal casamento com D. Luiz – um monarca muito constitucionalista mas fraco, que permitia que a sua esposa recrutasse irmãs de caridade, que clamasse contra o último golpe do Duque de Terceira, enfim que ignorasse os brandos mas laicos costumes, já tidos como milenares desde a Regeneração e até antes.
Sim, incrível, a filha daquele que tomara Roma e tinha feito de Pio proclamar-se prisioneiro no seu recanto da colina do Vaticano, logo após o seu último protector, o terceiro Bonaparte, ter sido batido num primeiro embate com as tropas da Alemanha, tanto dos estados protestantes como católicos.
E assim foram abertas as portas para que em Versalhes fosse proclamado o segundo Reich.
Por razões que não desenvolveremos aqui, Napoleão III era particularmente odiado em Portugal, por todos os espíritos. A sua ligação ao Vaticano tornava ainda a imagem do papa mais ténue.
A rainha Maria Pia de Saboia, as suas despesas avultadas, a sua vida particular tida como muito agitada, tudo isso ligado a uma piedade ostensivamente beata, constitui mesmo a primeira trincheira da crítica republicana e não só.
A caridade institucional, que era a profissão obrigatória dos consortes da época, sobretudo os tidos como liberais, contrastava com a imagem convincente de coração oferecido aos carenciados da sua antecessora, D. Estefânia de Hohenzollern, agindo em perfeita simbiose com o marido e não por papel inerente à posição e como tal tida.
A caridade saboiana era uma caridade mais cara, que exigira além da mencionada importação de umas quantas Irmãs de Caridade (ao invés da orientação da teologia eclesiástica anunciada por D. Pedro e o seu ministro Aguiar, o “mata-frades”), uma pompa e circunstância num reino que gostava de certa discrição nestes assuntos.
Cara? D. Maria Pia retorquia: ”Quem quer ter uma rainha, tem de a pagar!”
O conselheiro Acácio, de Eça, exclamara, perplexo e incapaz de a tal acrescentar alguma coisa, ”a Constituição Italiana é muito liberal”. Sentia estar perto do indicível (1).
Eça podia tê-lo posto a comentar que havia, de facto, uma distância entre o Vaticano e o Quirinal. Seguir-se-ia o mesmo silêncio embaraçado.
É que tão cruciais assuntos deviam ser servidos, nos novos usos do reino, com metáforas e outros ornamentos, no meio de apropriadas conversas sobre assuntos mais conviviais, evitando susceptibilidades frequentes, até pelo facto de que a politica, tal como os nascimentos ilegítimos, não serem sempre próprios às boas mesas, a não ser com perífrases e muita arte, só a poucos dada.
É que a “Santa Religião” da “Divinal” (é o adjectivo que consta do hino) Carta Constitucional, concedida por D. Pedro, pela Graça de Deus, Rei de Portugal, em 1826, e prevendo, sobretudo através do Poder Moderador, uma devolução oportuna das benesses e direitos concedidos ao outorgante quando este o entendesse ou quase, oferecia-lhe, de facto, quase tantas imoderadas “necessidades” de intervenção “moderadora” quanto as Cortes de Lamego o previam para o serviço do “usurpador”, que a completava com a genuína vontade democrático-caceteira da canalha da capital em prol da sua causa.
Tal como D. Pedro, D. Miguel, por educação, era avesso a esmeros no convívio social.
Mas voltemos aos gloriosos anos 1830. Nessa década, Alexandre não era o único historiador pontífice a oficiar na Europa.
O Liberalismo mitigado, o do “juste milieu”da Monarquia de Julho (1830), tinha já recorrido aos grandes historiadores exactamente dois dos três que Marx afirmará serem os seus precursores da sua concepção de História como história das Lutas de Classes. Não era caso para menos, porque o deposto Carlos X, além de querer livrar-se da bandeira tricolor, para retomar a branca de Henrique IV e do que restava da Carta Constitucional outorgada por seu irmão Luís XVIII, ainda se preparava para decretar que só os mais ilustres proprietários agrários, de antes de 1789,deveriam gozar de direitos políticos.
Enfim, uma filosofia que brilhantemente, embora muito tardia, se poderia sintetizar, nas suas diversas variantes, na fórmula “la terre ne ment pás”, do inefável Pétain.
Era uma questão de mitos fundadores. A França voltaria a ser, como 30 anos atrás, ”a filha primogénita da Igreja” (v. Carlos Magno, etc… ). O monarca orleanista serviu-se inicialmente do fogoso e belicoso Thiers, o fundador do Liceu moderno, que inspiraria Passos Manuel.
A história mostra-o como um repressor competente das massas, agora de novo, em 1871, um arauto da nova Argélia francesa, arrancada aos turcos e ignaros árabes, local de eleição em África para que a nova Europa ali implantasse a moderna sociedade industrial, ou melhor as suas modernas premissas agrárias. E sobretudo, e ainda mais do que no passado, a “missão civilizadora da França”, além de mito fundador não desdito pela Grand Revolution. Desenvolver-se-ia…
O projecto começara com Carlos X, mas só o ímpeto de modernizadores poderia levá-lo a bom porto mas Thiers era muito buliçoso, e Luís Filipe preferia alguém um pouco mais quietista, tanto em reformas internas, como em não lançar ondas que desgostassem a nova Velha Albion, agora“whig”, de Palmerstone. E os banqueiros e grandes financeiros que tinham despontado no reino, apoiavam o pacifismo e o “bom meio termo” de S.M.
Homem de ordem, o distinto Thiers era um temperamento demasiado reformador e belicoso, era do partido do movimento, e agora era o partido da ordem que devia governar, entendia o rei.
A França tinha recomeçado a apresentar-se como antes de Bonaparte, isto é, como a “Pátria da Declaração dos Direitos do Homem”, embora de momento tolhida na sua missão de libertadora das nacionalidades, em virtude do fracasso da revolução polaca, do papel de vigilância e polícia que discretamente a Santa Aliança lhe confiara em matéria de tutela dos eternos excessos em solo espanhol.
Claro que Portugal era outra gente, gente que só prestava contas perante o Liberalismo Máximo britânico. Mesmo se muitos portugueses letrados perscrutavam o que se passava em Paris, de facto, como o Duque de Saldanha (o “D. João VII”) sempre soube, as coisas decidiam-se em Londres.
Wellington apoiara oficiosamente D. Miguel, mas agora com Palmerstone no Foreign Office, este voltará a ajudar D. Pedro, como o fizera quando da sua aclamação poucos anos atrás, no muito avançado “cabinet” Tory de Castlereah, o outro irlandês protestante a ter sido “prime” no Reino Unido. Tinha mudado de partido, mas de facto não de ideias, Wellington é que fora um meteorito a contra corrente.
O facto de saber bem quanto a França pouco importava não terá também impedido D. João VI de oferecer a Talleyrand uma pensão vitalícia maior do que a média dos vencedores de Bonaparte tinham acordado doar ao “príncipe da Paz” anualmente, até á sua morte.
O novo historiador pontífice em França era Guizot, um liberalismo que se estendia totalmente ao ponto de vista económico, o que era raro na época. As suas relações pessoais com o rei eram excelentes, singularmente excelentes.
Aos operários e desempregados que se manifestavam aos milhares nas praças, ele retorquia, encorajando-os: - ”Enrichissez-vous!” A riqueza só dependia da abnegação e força de vontade de cada um.
(1) Nota do Editor: Indicível é o mesmo que indizível, mas esse termo caiu em desuso, ou praticamente em desuso.
Continua no próximo domingo, com a publicação do II Capítulo.