terça-feira, dezembro 15, 2009

Entrevista de Aminatu Haidar ao "Público"


"Os momentos mais duros para mim são ouvir
Mohammed [o filho mais novo] a chorar.
Falar com a minha mãe também é duro.
Mas com o Mohammed é o pior".

Por Sofia Lorena, em Lanzarote

É ela que decide tudo e não havia motivo para que desta vez fosse diferente. A entrevista estava prometida há três dias. Estava decidido que seria em francês, porque a mulher que não tem medo de morrer tem medo de ser pouco rigorosa. Seria como ela quisesse e quando ela o entendesse. Assim foi.

Aminatu Haidar já tinha saído para ir à casa de banho, como todas as manhãs, de cadeira de rodas. Regressou pelas 8h40 ao quarto, ao habitáculo de três metros por três do parque de estacionamento dos autocarros do aeroporto de Lanzarote onde vive há quase quatro semanas, para cumprir o dia 29 da sua greve de fome.
Passava um pouco das nove quando Edi Escobar, a sua assistente, nos chamou à porta. "Vamos pesá-la, podes vir connosco", disse baixinho. "Alguém tem um guarda-chuva?" Sim, alguém tinha. Chovia novamente. "Já não vem." Foi nesse momento que nos disseram: "Entra, é agora ou nunca."
Encontrámo-la sentada no colchão onde dorme e descansa, encostada a almofadas encostadas à parede. Vestida com um dos bonitos lenços que troca a cada dia ou a cada dois dias, branco, flores e folhas em tons de castanho. As pernas tapadas com cobertores. Sorridente, com um sorriso fraco mas seguro. Apertou-nos a mão. Disse-nos "bom dia". Pediu-nos com palavras e gestos que nos aproximássemos. Falou baixinho mas sem hesitações. Apontou para a fotografia dos filhos, ao seu lado, encostada à parede, apoiada numa bolsa, atrás das garrafas de água mineral. Começou várias frases dizendo-se "sure et certain", como se uma das palavras não fosse suficiente. Foi assim que a vimos, segura e com certezas. Tranquila. Atenciosa. Cansada mas não derrotada.

Como está?
Estou bem, cansada, mas bem. Peço muitas desculpas pelo atraso, por estar sempre a adiar esta entrevista. Mas canso-me muito. É melhor fechar a porta, estão aí muitas pessoas, fazem barulho. Aproxime-se (insiste com gestos).

Continua a conseguir falar com os seus filhos, com a sua mãe, ainda lhes telefona?
Sim, como sempre. Mas falar com Mohammed (de 13 anos) é muito difícil, ele está muito afectado, não tem as forças de Hayat (15 anos). Quando falo com ele, ele começa a chorar. Tento sempre acalmá-lo, tranquilizá-lo, dizer-lhe que deve ser paciente. Mas é uma criança.

Ao longo de todos estes dias, consegue escolher o momento mais duro? Houve algum momento preciso em que pensou que não podia mais?
Não é um momento, são momentos. Falar com Mohammed afecta-me muito. Os momentos mais duros para mim são ouvir Mohammed a chorar. Falar com a minha mãe também é duro. Mas com o Mohammed é o pior. Quando ele me pede para deixar a greve de fome é muito duro. Tenho aqui a foto deles, estão sempre por perto. A carta que eles me enviaram também foi dura para mim. Mas posso dizer que depois também me deu muitas forças. Ajudou-me a continuar. Quando recebi a carta pensei nas outras crianças sarauís. Nas que têm os pais desaparecidos, nas que viram os pais serem mortos, nas que têm pais que foram presos. Ou nas que estão nos campos de refugiados. Fortaleceu-me. Ajudou-me a continuar convicta nas minhas posições em defesa dos direitos humanos, dos direitos do povo do Sara Ocidental.

Tem dito que acredita que vai vencer, que Marrocos vai ceder. Mas, e se isso não acontecer?
Eu estou segura, tenho a certeza de que Marrocos prefere a minha morte. Estou segura, tenho a certeza. E que mantém a sua posição para me fazer perder tempo, que vai manter a sua posição à espera que me aconteça uma tragédia. Mas, ao mesmo tempo, confio na solidariedade internacional que se gerou. Eu não posso fazer previsões. Não posso dar nenhumas garantias. Não posso dizer que vou resistir. Mas também não posso dizer que não vou resistir. O momento pode chegar. Nem eu nem os médicos podemos controlar o meu estado. Entrei numa situação muito crítica. Tenho forças ainda, mas mesmo tendo forças, nada garante que num dado momento o meu coração não vá parar.

Não considera repensar a decisão de deixar de ser seguida por médicos?
Eu sou flexível nisso. Decidi deixar de ser seguida por causa do comportamento espanhol. Foi esse comportamento que me levou a tomar essa decisão. Mas sou flexível em relação a esta decisão, não sou inflexível.

Tem consciência de todo o reconhecimento internacional que alcançou nestes dias? Estava quase sozinha no primeiro dia e agora não há quem não conheça o seu rosto.
Sim, estou consciente. Estou feliz. Fico feliz de ser capaz de mobilizar pessoas em todo o mundo para a gravidade da situação da população sarauí, que está sob ocupação ilegal de Marrocos. Fico feliz por mobilizar as pessoas para a causa sarauí em geral.

Sabe que a Frente Polisário ameaçou regressar às armas se lhe acontecer o pior? Como pacifista, como vê a possibilidade de que a sua morte possa ser usada como justificação para uma nova guerra?
Sou uma defensora dos direitos humanos de uma forma não violenta. Sou uma pacifista. Escolhi como via de resistência o pacifismo. Mas o regresso à guerra... Se a Frente Polisário, que é o movimento que representa o povo sarauí, decidir... É um movimento de libertação e, como tal, todas as possibilidades de acção são legítimas para este movimento. Daqui lanço um apelo à comunidade internacional para que deixe de ser apenas espectadora face a tal situação de injustiça. Penso que é o momento para a comunidade internacional tomar uma decisão e pôr finalmente termo ao nosso sofrimento. Para dar ao povo sarauí a garantia de um referendo sobre a sua autodeterminação.

Se a sua determinação prevalecer, se conseguir regressar, como deseja, a El Aaíun, como pensa utilizar toda esta visibilidade que adquiriu?
Para mim, o reconhecimento internacional é muito importante. É fundamental para a minha causa. Vou continuar na via pacífica de resistência e multiplicarei os esforços para que Marrocos conceda à população civil sarauí os seus direitos elementares. Este reconhecimento internacional vai desempenhar um papel muito importante para romper o muro de silêncio que se encontra em redor do Sara Ocidental. Estou segura e tenho a certeza de que as visitas dos observadores internacionais vão duplicar. Nesse momento, Marrocos tentará expulsar todos os observadores internacionais, como sempre fez.

Mas haverá "um antes e um depois" da sua greve de fome, como tantos dos que a rodeiam dizem acreditar? Isto vai mudar tudo?
Não posso ter a certeza. Não posso garantir. Mas tenho confiança neste movimento de solidariedade e sei que a minha situação esclareceu perante todos a verdadeira imagem de Marrocos. Mesmo os amigos de Marrocos agora dizem mal de Marrocos. Porque as pessoas de bem, as pessoas livres, não podem aceitar estes crimes contra a humanidade. E eu confio neste movimento. Tenho confiança nestas pessoas, tenho a certeza de que vão mobilizar outras. Para dar a conhecer a causa dos sarauís. Os media agora estão sensibilizados, estão alerta para a situação dos territórios ocupados do Sara Ocidental. Os media vão continuar a falar, já têm argumentos.

A Edi Escobar diz que todos eles aqui, da Plataforma, acreditaram que ia regressar a casa no dia 4, mas que a Aminatu estava desconfiada.
Eu não acreditei que fosse verdade [na sexta-feira, dia 4, quando Madrid enviou um representante ao aeroporto de Lanzarote e lhe disse que podia regressar ao Sara e chegou a colocá-la dentro de um avião médico que nunca descolou porque, afinal, a autorização de Marrocos nunca existira]. Pedi garantias, disseram-me que havia. Mas eu tive dúvidas. E afinal eu tinha razão.

Se, como crê, Marrocos ceder, qual será a primeira coisa que fará quando souber que o avião para a levar a casa está pronto? Vai telefonar aos seus filhos?
A primeira coisa que farei será agradecer a todas estas pessoas que estão comigo, que me acompanham desde o primeiro dia. Vou agradecer aos jornalistas também. Foi isso que fiz da outra vez. Só telefonei à minha família quando já estava dentro do avião. Antes de entrar num avião vou exigir garantias, quero certezas.
Público, de 14.12.2009