domingo, junho 07, 2009

Nara Leão - O Canto da Resistência

Eternamente musa
Há 20 anos, silenciava-se a voz doce
da cantora e jornalista Nara Leão.


A morte prematura de Nara Leão aos 47 anos, em 1989, a 7 de junho, impõe um balanço da importância artística e política de uma intérprete popular. Considerada a "Musa da Bossa Nova", o nome de Nara não aparece publicamente aos começos do movimento quando não era profissional e, sim, diletante. Participou do nascimento do movimento na condição de amadora, dada a amizade com Roberto Menescal, Edu Lobo, Wanda Sá e Ronaldo Boscoli. Era uma jovem de Copacabana, graciosa, que percebia o novo e cantava entre amigos.
Nara Leão estreia-se profissionalmente em 1963, ao lado de Vinícius de Moraes e Carlos Lyra, na comédia Pobre Menina Rica, ano em que a bossa nova já ultrapassara a sua primeira fase e vivia a segunda, em plenitude. O sucesso dá-se, de modo efectivo, após o movimento militar de 1964, através do show Opinião e do disco Opinião de Nara, do mesmo ano.
Nasceu em Vitória, capital do Espírito Santo, a 19 de Janeiro de 1942. Veio para o Rio de Janeiro com um ano. Sua formação é, pois, toda carioca, zona sul, Copacabana no auge, anos 50 (ao raiar a década de cinqüenta estava com oito anos). Viveu, portanto, dos oito aos dezoito anos, a expansão de Copacabana como bairro de classe de média a alta, pontal de um modo de vida diferente e peculiar.
Foi na praia de Copacabana, quando tinha apenas 11 anos, que conheceu Roberto Menescal, amizade da vida inteira. E foi no apartamento dela, mocinha, na Avenida Atlântica, onde praticamente nasceu e cresceu a bossa nova em reuniões das quais participavam, entre outros, João Gilberto, Menescal, Vinícius de Moraes, Carlos Lyra e às vezes Tom Jobim. Os pais iam dormir e a rapaziada ficava na música até alta madrugada. Certa vez até um piano de origem desconhecida apareceu por lá e amanheceu na sala, para surpresa de sua mãe ao acordar...
Eram os começos da modernização da cidade e do comportamento. Sadia ânsia de novidade e de incorporação de valores próprios ao modo de vida e as ilusões da pequena burguesia urbana carioca. Igualmente sua irmã, Danusa Leão, viveu à frente de seu tempo, desde muito moça manequim famosa e figura internacional a partir de seu casamento com o jornalista Samuel Wainer. Estimada e querida pelo charme oriundo de uma timidez que lhe não impedia de ser franca, Nara polarizou como figura feminina simbólica, a natureza íntima do movimento. Daí haver sido sempre alcunhada de "musa" – mesmo na condição de diletante do mesmo.
A partir do show Opinião, Nara fez-se famosa e estimada pois foi, talvez, a primeira cantora a incorporar ao seu canto, um repertório de convocação política à resistência democrática recém-iniciada no País, alguns meses depois do golpe.
Nara chegou a dizer em entrevista que:
"...os militares podem entender de canhão e metralhadora, mas não pescam nada de política.".
Poucos anos depois, conseguiria uma posição em relação à qual sempre se dividiu: a popularidade. Se a desejava como artista detestava-a como pessoa. A timidez conflitiva e o recato natural não estavam aptos a aceitar a notoriedade. Esta veio através da interpretação de A Banda de Chico Buarque de Holanda, 1966, no Festival de Música Popular Brasileira da TV Record.
A era dos festivais, que de certa forma viria a operar transformações na bossa nova, divulga Nara Leão em termos nacionais. A partir do sucesso de A Banda, inicia-se um processo de aperfeiçoamento de seu canto, até então ingênuo e musicalmente descuidado de seu repertório. Gravando pouco, sem cortejar o sucesso imediato, construiu sua obra de modo paulatino, lúcido e perseverante, como cabe (segundo os entendidos em astrologia) aos capricornianos. Tímida, suave, Nara gostava de shows simples, quase recitais. E explicava:
"Não me sinto mal cantando e tocando violão sentada em um banquinho. Atualmente os artistas têm criado mise-en-scêne especiais para suas apresentações mas, realmente, não tenho motivação para esse tipo de coisa. Não sei gritar shazan e me transformar."
Cantou vários gêneros de música popular brasileira e jamais selecionou seu repertório segundo vogas e modas.
"O facto de apoiar todos os movimentos, desde que fossem bons, fez com que eu reunisse o maior repertório do Brasil. As pessoas podem ter discutido se eu canto ou não canto, se gostam ou não gostam, mas têm que admitir que a minha falta de preconceito em relação aos movimentos fez com que eu gravasse coisas antigas, novas e de vanguarda." (Nara Leão)
Lentamente aperfeiçoou o seu canto com aulas e estudo de técnica, e ao amadurecimento pessoal e psicológico correspondeu o impecável cuidado com o repertório e com o que lhe era inconfundível: o estilo. Nara é inconfundível. Às primeiras emissões do seu canto definem quem é, e seu clima sensível, feito de sutileza, delicadeza, charme e algum mistério. As limitações de estreiteza, colocação e afinação lhe não impediam o contacto de afeto introvertido e mágico com o público e foram gradativamente corrigidos com estudo de canto e amadurecimento expressivo.
O final dos anos sessenta, com os festivais e a eclosão da Tropicália, e logo depois, o Ato Institucional n° 5, operaram profundas transformações na cantora, às quais devem se somar dois fatos: o seu casamento com o cineasta Carlos Diegues e o nascimento de seus filhos Isabel e Francisco, factos estes causadores do andamento pausado e desambicioso de sua carreira, qualificada bem mais pela escolha do repertório que da busca de sucesso. A eles, deve haver-se somado o exercício constante de atividade psicoanalítica. Os conflitos com a notoriedade, a perseguição política, ameaças, a saída do Brasil para um período em França, a volta em princípios da década de setenta, os sustos e desencantos de sua geração, a contestação ao regime, a censura e o amadurecimento, levaram-na a um hábito de equilíbrio, nada obstante tenso, entre carreira e vida pessoal. Abandonou o esquema de shows e excessivas aparições em televisão, depurou a sua arte, afiou o repertório e dividiu-se entre cantar, ser mãe e, alguns anos depois, estudar psicologia com afinco, disposta a abandonar a carreira, projeto jamais realizado. Conhecedora das características intimistas de sua voz e avessa a extroversões retumbantes nos palcos, sentia-se mal quando o sistema mercadológico dela exigia tais demonstrações. Preferia o que posso chamar de "shows de câmara".
Nara vivia intensamente alternativas díspares. Não apreciava as tensões das estreias e a intimidade invadida. Por outro lado, amava cantar e sabia representar um tipo de canto no qual era única.
"A música para mim tinha vários significados: comunicar, ganhar dinheiro, ficar independente. Tudo isso ao mesmo tempo. Só mesmo depois que parei, passei dois anos em Paris, tive meus filhos e não tendo nenhum desses apelos à minha volta, é que me sinto com disposição e vontade de cantar". (Nara Leão)
Mesmo afastada por longos períodos dos shows e gravadoras, jamais deixou de ser uma artista com público talvez não muito exaltado, mas cativo. Nos 25 anos de carreira, esteve sempre disposta a mudanças e variações, passando por diversos gêneros. Em 1978 preferiu Roberto Carlos com "Em Que Tudo Mais Vá Pro Inferno". Em 1980, fez uma homenagem para Chico em "Com Açúcar, Com Afecto" e, um ano depois foi a vez de "Romance Popular" ao lado de Fagner, Robertinho do Recife, Geraldo Azevedo e outros nordestinos. Com "Meu Samba Encabulado", o 200° de sua carreira, recebeu elogios unânimes da crítica. Em 1987, no disco "Os Meus Anos Dourados", fez versões dos clássicos de filmes americanos das décadas de 40 e 50 e cantou ao lado do grande amigo Roberto Menescal. Para os que criticaram a "musa protesto" por cantar músicas americanas, ela respondia:
"Acho uma pena que algumas pessoas ainda pensem de forma preconceituosa em relação à música internacional. Eu prefiro seguir o critério qualitativo. Para ouvir a pior imitação da música estrangeira, prefiro ouvir jazz e Sarah Vaughan."
Participou de movimentos musicais variegados, havendo lançado compositores novos e regravado outros tantos antigos, numa sempre louvada capacidade de escolha de seu repertório. Nara sempre andou por uma contramão antecipatória de tendências futuras.
Ao morrer jovem, aos 47 anos, não nos infligiu apenas a perda de uma artista de qualidade, mas poderosa figura pública e política. Talvez tenha sido Nara, dentre as cantoras brasileiras, a primeira artista, após o movimento militar de 1964, a alçar o canto na direção da liberdade. Ao participar dos "shows Opinião" e, em seguida, "Liberdade, Liberdade", a tímida Nara deu o primeiro "grito", repetido pela classe artística, alguns intelectuais, exilados e jornalistas, proclamando a necessidade do retorno do País à sua ordem democrática e Constitucional. Não parou aí. Ao longo dos anos de autoritarismo, tornou-se o símbolo da resistência no seio do movimento artístico. Instigante este traço de Nara Leão: tímida, recatada, recolhida em seu modo de cantar, de ser e de se expor; a partir da aparente fragilidade de seu ser, tomava decisões e posições com a firmeza necessária para transformar-se em liderança de natureza pública por meio da cultura. Possuía a decisão secreta e inabalável dos suaves. Havia, também, a consciência política e pública que a impelia para um engajamento e participação nas idéias e lutas de seu tempo. Alternar estados de espírito entre todas essas instâncias, às quais se entregava com sinceridade, dedicação, alto senso profissional e humano de inserção, foi a característica do conflito eternamente vivido por Nara Leão e resolvido sempre de maneira criativa e útil, pois conseguiu ser artista fiel e séria, mãe dedicada, cidadã participante e amiga certa. (...)
Fonte Carlos Diegues em O Globo de 10.04.1999