quarta-feira, março 12, 2008

Maria Gabriela Llansol


Foi através de um mísero oitavo de página de jornal que recebi a notícia da morte da escritora Maria Gabriela Llansol, na semana passada, aos 76 anos de idade. Autora por cuja escrita há muito nutro um certo carinho e consideração.
Confesso que, momentaneamente, senti um suave arrepio de pele, não tanto pela morte da senhora, figura ímpar da ficção contemporânea portuguesa, mas, principalmente, pelo facto de o triste acontecimento ter passado quase despercebido na generalidade dos órgãos de comunicação social, que, diariamente, nos enchem de Mourinhos, Cristianos Ronaldos e de toda a “pimbalhada” do reino. Trata-se de mais uma injustiça, a somar aos muitos atentados contra a nossa vivacidade cultural, talvez e fatalmente, não tanto por esquecimento mas, mais grave ainda, pela enorme ignorância que o país tem sobre esta “escritora estranhamente extraordinária”. Muitos com “responsabilidades éticas” nem sequer saberão que ela alguma vez existiu.
Formada em Direito e Ciências Pedagógicas e filha de um bibliófilo, Gabriela cedo se entregou à escrita, em 1957 – já lá vão 50 anos! –, como quem tinha que cumprir uma estóica missão na sua passagem pelo mundo. E quando assim é, morre-se feliz e… solitário, não obstante a solidão ser motivo de infortúnio e possuir a negra cor da morte.
E foi o que aconteceu! Num país em que a promoção não depende tanto do mérito mas de interesses corporativos tipo maçonarias e Opus Dei, donde pontificam todas as invejas e intrigas, Gabriela, divulgada por Prado Coelho, sempre procurou o silêncio, isolou-se na sua casa de Sintra com o homem da sua vida, e fez disso o seu lugar do mundo. Precisamente, um dos seus trabalhos intitula-se “Curso de Silêncio” (2004). O silêncio como filosofia de vida, ao encontro dos seus mitos (como S. João da Cruz), mas também como couraça contra os invejosos que povoam o meio cultural português, que não compreendem e se riem do hermetismo da autora, acusando-a, ignobilmente, de esoterismo e de misticismo.
Gabriela, humilde como era, dizia que não fazia literatura, que vivia à margem desta; que apenas escrevia. Muito raramente dava entrevistas; jamais vestiu a capa das ideologias para ser grande, tendo acompanhado, em 1965, o seu marido no exílio; e morreu com pouquíssimos amigos. Como todos os cidadãos que optam pela sua liberdade plena, tinha a sua irreverência própria, ao seu modo, e o seu conceito de intervenção, talvez passiva, é certo, mas, quiçá, mais útil do que muitos que têm a cidadania na barriga, ou seja, nos “banquetes cívicos e solidários” sabe-se lá com quem e com quê. E pergunto: hoje, o que há de maior intervenção activa na sociedade portuguesa que não sejam os interesses corporativos dos protagonistas dessa intervenção e dos seus maliciosos grupinhos? E os outros, os humanistas que não estão com o sistema, esses, por seu lado, parecem ter caído no desânimo; há muito que baixaram os braços…
Triste fado do artista português! Só assim, com esta postura de silêncio, de auto-isolamento, de laica clausura, é que Gabriela conseguiu vingar o seu génio inovador na literatura, em que privilegia grandemente a prosa poética, da qual o romance passa a ser o que não era antes, imbuído numa fluidez e musicalidade que tornam o texto revolucionariamente diferente e pioneiro quanto à sua inevitável evolução. Uma estética diferente de Saramago, de Lobo Antunes, de Agustina, mas ao mesmo nível destes patamares e, quiçá, talvez com um percurso mais dificultado em cada etapa, porque, não tendo dado a mínima confiança aos donos do reino, é, hoje, um nome desconhecido da esmagadora maioria dos portugueses.
Mas o mais importante ficou – a obra! Grandiosa! Ficaram 30 livros e mais de 75 cadernos, material que espero ver, um dia, trazidos à estampa com novas compilações.
Triste fado do artista português! Mais para diante – daqui a 10 ou 20 anos –, a escritora nascerá. Nascerá então efectivamente para este mundo. Será arrancada da sua voluntária e forçada clausura e voará para o céu das estrelas luminosas.
Infelizmente, em Portugal, sempre assim fomos.

JCP
Excerto da autora:
Seguindo o meu olhar até aos lábios de Bach, há sempre um espaço subterrâneo, uma fala que perscruta a sua boca aberta.
Baixo os olhos sobre as claridades cintilantes, enamoradas, visualizo um volume que, na minha língua, deve ter um nome. Procuro então um outro volume para que não encontro palavras, ou superfície e imagem:
água livre, nem de rio, nem de mar, nem de lago, nem de nevoeiro, água repleta de silêncio no momento do fogo, ou talvez clima vulcânico no centro das terras. Designações sobrepostas de múltiplas línguas voltam à unidade, é a explosão do nascimento do tempo; é o seu princípio de fuga estelar no seio das criaturas; (levanta-se uma brisa, sua descrição é impensável para além de uma meditação de neblina).
É uma visão de deleite tão intenso que fios de água escorrem por entre o fogo, que é circundante e leve. Ali estão compreendidos os seres vivos desde o início dos séculos ao fim das carreiras mortais e, sobre eles, os seres mortos não se distinguem da palpitação consumitiva: meus companheiros vêem por mim,
a quem eu cerro as pálpebras; acordo abrindo os olhos.

Maria Gabriela Llansol, in Um Falcão no Punho, 2.ª edição, Relógio D’Água, 1998.