terça-feira, dezembro 12, 2006

Pinochet no Inferno

Manuel António Pina

Se acreditasse na Providência, se acreditasse na Justiça, divina ou humana, se acreditasse que Deus pode ter algum incompreensível espírito de humor, se acreditasse na ironia do acaso e não apenas no acaso, atribuiria talvez significado ao facto de Pinochet ter morrido no Dia Internacional dos Direitos do Homem. E, se acreditasse numa vida para lá desta vida, imaginá-lo-ia recebido por gritos e punhos fechados à porta do último círculo do Inferno, finalmente confrontado, olhos nos olhos, com as suas vítimas e os seus crimes (no meio da multidão de mortos e desaparecidos, Victor Jara cantaria ainda, suprema humilhação, uma canção de amor). Por fim, se acreditasse na poesia dos símbolos, acharia absurdo que tenha morrido do coração.
Não, a morte de Pinochet não teve, como a sua vida não teve, qualquer desígnio moral. Todos os dias morrem assassinos e semeadores de infelicidade e nem por isso o mundo fica melhor. Em alturas assim gostaria de acreditar que há algures um Deus justiceiro que pede contas a gente como Pinochet. Mas, se houvesse, decerto haveria também um advogado do Diabo (talvez algum "Chicago boy") a argumentar por ele. E, estando certa a convicção mística de Swedenborg, acabaria no Inferno não por castigo mas por livre escolha.

Jornal de Notícias, 12.12.06




Cartoon, do blog "Pitecos"