Se acreditasse na Providência, se acreditasse na Justiça, divina ou humana, se acreditasse que Deus pode ter algum incompreensível espírito de humor, se acreditasse na ironia do acaso e não apenas no acaso, atribuiria talvez significado ao facto de Pinochet ter morrido no Dia Internacional dos Direitos do Homem. E, se acreditasse numa vida para lá desta vida, imaginá-lo-ia recebido por gritos e punhos fechados à porta do último círculo do Inferno, finalmente confrontado, olhos nos olhos, com as suas vítimas e os seus crimes (no meio da multidão de mortos e desaparecidos, Victor Jara cantaria ainda, suprema humilhação, uma canção de amor). Por fim, se acreditasse na poesia dos símbolos, acharia absurdo que tenha morrido do coração.
Não, a morte de Pinochet não teve, como a sua vida não teve, qualquer desígnio moral. Todos os dias morrem assassinos e semeadores de infelicidade e nem por isso o mundo fica melhor. Em alturas assim gostaria de acreditar que há algures um Deus justiceiro que pede contas a gente como Pinochet. Mas, se houvesse, decerto haveria também um advogado do Diabo (talvez algum "Chicago boy") a argumentar por ele. E, estando certa a convicção mística de Swedenborg, acabaria no Inferno não por castigo mas por livre escolha.
Jornal de Notícias, 12.12.06
Cartoon, do blog "Pitecos"