Tal como já noticiámos, há um felgueirense que tem escrito um romance de cariz político, intitulado "Senhora do Santo Oculto".
Convencemos o autor a deixar-nos publicar um "cheirinho" da obra.
Assim, trazemos à estampa o XXV capítulo.
O magistrado sossegou-os. Dedilhava as pontas do bigode, num gesto contínuo, que era um tique desde que o seu avô – um abastado lavrador da aldeia – deixou de amanhar as terras, devido a doença reumática. Afonso era um homem da última década do século XIX e tornara-se um incondicional seguidor do Estado Novo; sabia ler e escrever, tinha alguns conhecimentos de cultura geral, mas vivia condicionado à aldeia, da qual fora, anos a fio, seu regedor.
O magistrado, agora com cinquenta e oito anos, tinha bebido, de facto, do seu avô paterno a altivez do poder sobre os outros homens em nome da estabilidade do Estado e da ordem política nele instituída. E prosseguiu a conversa, naquela tarde sombria de Dezembro, espraiado que estava na sua cadeira de descanso, colocada na sala da biblioteca particular do solar, construído pelo seu bisavô Antero, que era casado com Etelvina, filha mais velha de D. António da Mata, homem dos mais abastados recursos da aldeia vizinha. O magistrado sentia-se tão familiarizado com aquele casal – Evita e Manuel –, que recebera em sua casa duas horas antes e ainda a conversa ia a meio do que havia por dizer (ou por esclarecer). Disse então o magistrado:
- Pertencemos à Ordem do Santo Oculto, para alguma coisa é! Não é verdade? O processo foi adiado tantas vezes as que foram necessárias; foi dessa maneira que te conseguimos segurar na presidência da Junta de Freguesia. Caso contrário, hoje estaríamos pessoal e politicamente destruídos.
- E até quando irá prolongar-se esta patifaria? – interrompeu Manuel.
- Feliz ou infelizmente, por muitos e muitos anos?
- O quê?! – Evita ficou estupefacta não só com a afirmação do magistrado, mas também com o seu natural à-vontade.
- O objectivo da Ordem do Santo Oculto não é esse. A Comunicação Social badalou demais o assunto e até se auto-plagiou, para levar ao rubro a investigação policial – ia explicando o magistrado, em palavras muito cuidadas mas seguras.
- Ora, ora… - interrompeu, mais uma vez, Manuel – Um patife manda uma carta anónima à Procuradoria ou à Polícia a acusar, sem qualquer fundamento, um cidadão que o povo elegeu para seu governante, depois envia uma cópia a um jornalista e já temos o chamado jornalismo de investigação. E vós, magistrados, deixais passar uns e outros completamente impunes.
- O problema, meu caro Manuel, é que os patifes, aqui, somos nós.
- Hum!… Hum!… - murmurou o casal, em uníssono.
- Sim. Tu, Evita, nesta década e meia de exercício dos sucessivos cargos políticos, foste, sempre, procurando as câmaras de televisão e as fotografias para os jornais. Quando assim é, a Comunicação Social cobra alto o preço pelo aluguer do seu palco. Repara, por exemplo, no que se passou com Lady Spencer – a Princesa do Povo. Quanto às fontes de informação, tenho que reconhecer que sabem interpretar a minha regra de vida. Uma vida de cor cinzenta, esta, a de ser magistrado. O que nos alegra – a nós juízes – é o segredo de Justiça, com o qual até nos é permitido jogar xadrez, que é o jeito metafórico de dizer que pomos e dispomos conforme a nossa disposição, ou seja, só condenamos quem achamos que deve ser condenado. Por isso, entre mim e os patifes, que são as fontes de informação, não há diferença alguma, porque eu sei quando devo ser juiz e quando devo ser patife. E tu, minha cara Evita, num certo sentido semelhante, entre ti e um jornalista, também, não há diferença alguma, porque tu sabes quando deves ser uma mulher política e quando deves ser paparazzi de ti mesma. Portanto, estamos todos – políticos, polícias, magistrados e jornalistas – metidos no mesmo saco: nesta realidade, que é a democracia, que vai sobrevivendo de contrastes. Se assim não fosse, não existiria, ou fossemos nós tão românticos ao ponto de queremos uma outra democracia – popular, por exemplo -, mas, para isso, casos como o teu corriam o risco de serem julgados no ágora da cidade. E o povo, esse coitado, nem sempre sabe como decidir: se pela pena capital ou se por uma aclamada absolvição.
- O povo elegeu-a sempre, contra ventos e marés; isso demonstra a honestidade do seu trabalho - regozijou-se Manuel.
- Ah!... Ah!... – riu-se o magistrado - Mas nós não estamos numa democracia popular, nem queremos isso. O trabalho que a Ordem do Santo Oculto tem de proceder é a de refazer, mas de maneira diferente, a defesa de Evita. E não é com festas e com procissõezinhas que ides lá, meus amigos. O meu trabalho, como presidente da Ordem, é a de que este caso não venha a fazer jurisprudência no país.
- E quais as consequências, se tal acontecer? – perguntou Evita, embasbacada.
- É a utilização daquilo a que podemos designar “bomba atómica” – respondeu friamente o magistrado.
- Bomba atómica??! – gritaram Evita e Manuel.
- Sim. Quero dizer que se aqueles a quem vós chamais patifes vieram a provar que, em determinada altura dos crimes de que és acusada, houve ligações de altas figuras do Estado ao caso da Junta de Freguesia, isso de maneira alguma será bom para ti, Evita.
- Eles terão coragem para tal? – questionou, felinamente, Evita.
- Se essas figuras do Estado quiserem, sim – era impressionante a frieza do magistrado.
- O quê?! Se essas figuras quiserem?!... – o casal não parava de se surpreender.
- Sim. Neste momento, e foi por isso que precipitaram o teu regresso, já devem saber que tu tens a tua própria “bomba atómica”, com certeza, politicamente muito mais pesada do que a deles. Mas a bomba que possuis só produziria efeitos nefastos para o inimigo se tu não tivesses regressado ao campo de batalha. Ora, se lançarem primeiro a deles, a tua, mesmo sendo mais pesada, perde a novidade do estrondo. E a história que contares não passará da história da carochinha em banda desenhada – explicou pausadamente o magistrado.
- Queres dizer que toda esta patifaria que fizeram a Evita não vai ter um final feliz? – indignou-se Manuel.
- É provável que tenha. E torno a dizer: pertencemos à Ordem do Santo Oculto, para alguma coisa é! Mas não estou em condições para garantir seja o que for – concluiu o magistrado.
O magistrado, agora com cinquenta e oito anos, tinha bebido, de facto, do seu avô paterno a altivez do poder sobre os outros homens em nome da estabilidade do Estado e da ordem política nele instituída. E prosseguiu a conversa, naquela tarde sombria de Dezembro, espraiado que estava na sua cadeira de descanso, colocada na sala da biblioteca particular do solar, construído pelo seu bisavô Antero, que era casado com Etelvina, filha mais velha de D. António da Mata, homem dos mais abastados recursos da aldeia vizinha. O magistrado sentia-se tão familiarizado com aquele casal – Evita e Manuel –, que recebera em sua casa duas horas antes e ainda a conversa ia a meio do que havia por dizer (ou por esclarecer). Disse então o magistrado:
- Pertencemos à Ordem do Santo Oculto, para alguma coisa é! Não é verdade? O processo foi adiado tantas vezes as que foram necessárias; foi dessa maneira que te conseguimos segurar na presidência da Junta de Freguesia. Caso contrário, hoje estaríamos pessoal e politicamente destruídos.
- E até quando irá prolongar-se esta patifaria? – interrompeu Manuel.
- Feliz ou infelizmente, por muitos e muitos anos?
- O quê?! – Evita ficou estupefacta não só com a afirmação do magistrado, mas também com o seu natural à-vontade.
- O objectivo da Ordem do Santo Oculto não é esse. A Comunicação Social badalou demais o assunto e até se auto-plagiou, para levar ao rubro a investigação policial – ia explicando o magistrado, em palavras muito cuidadas mas seguras.
- Ora, ora… - interrompeu, mais uma vez, Manuel – Um patife manda uma carta anónima à Procuradoria ou à Polícia a acusar, sem qualquer fundamento, um cidadão que o povo elegeu para seu governante, depois envia uma cópia a um jornalista e já temos o chamado jornalismo de investigação. E vós, magistrados, deixais passar uns e outros completamente impunes.
- O problema, meu caro Manuel, é que os patifes, aqui, somos nós.
- Hum!… Hum!… - murmurou o casal, em uníssono.
- Sim. Tu, Evita, nesta década e meia de exercício dos sucessivos cargos políticos, foste, sempre, procurando as câmaras de televisão e as fotografias para os jornais. Quando assim é, a Comunicação Social cobra alto o preço pelo aluguer do seu palco. Repara, por exemplo, no que se passou com Lady Spencer – a Princesa do Povo. Quanto às fontes de informação, tenho que reconhecer que sabem interpretar a minha regra de vida. Uma vida de cor cinzenta, esta, a de ser magistrado. O que nos alegra – a nós juízes – é o segredo de Justiça, com o qual até nos é permitido jogar xadrez, que é o jeito metafórico de dizer que pomos e dispomos conforme a nossa disposição, ou seja, só condenamos quem achamos que deve ser condenado. Por isso, entre mim e os patifes, que são as fontes de informação, não há diferença alguma, porque eu sei quando devo ser juiz e quando devo ser patife. E tu, minha cara Evita, num certo sentido semelhante, entre ti e um jornalista, também, não há diferença alguma, porque tu sabes quando deves ser uma mulher política e quando deves ser paparazzi de ti mesma. Portanto, estamos todos – políticos, polícias, magistrados e jornalistas – metidos no mesmo saco: nesta realidade, que é a democracia, que vai sobrevivendo de contrastes. Se assim não fosse, não existiria, ou fossemos nós tão românticos ao ponto de queremos uma outra democracia – popular, por exemplo -, mas, para isso, casos como o teu corriam o risco de serem julgados no ágora da cidade. E o povo, esse coitado, nem sempre sabe como decidir: se pela pena capital ou se por uma aclamada absolvição.
- O povo elegeu-a sempre, contra ventos e marés; isso demonstra a honestidade do seu trabalho - regozijou-se Manuel.
- Ah!... Ah!... – riu-se o magistrado - Mas nós não estamos numa democracia popular, nem queremos isso. O trabalho que a Ordem do Santo Oculto tem de proceder é a de refazer, mas de maneira diferente, a defesa de Evita. E não é com festas e com procissõezinhas que ides lá, meus amigos. O meu trabalho, como presidente da Ordem, é a de que este caso não venha a fazer jurisprudência no país.
- E quais as consequências, se tal acontecer? – perguntou Evita, embasbacada.
- É a utilização daquilo a que podemos designar “bomba atómica” – respondeu friamente o magistrado.
- Bomba atómica??! – gritaram Evita e Manuel.
- Sim. Quero dizer que se aqueles a quem vós chamais patifes vieram a provar que, em determinada altura dos crimes de que és acusada, houve ligações de altas figuras do Estado ao caso da Junta de Freguesia, isso de maneira alguma será bom para ti, Evita.
- Eles terão coragem para tal? – questionou, felinamente, Evita.
- Se essas figuras do Estado quiserem, sim – era impressionante a frieza do magistrado.
- O quê?! Se essas figuras quiserem?!... – o casal não parava de se surpreender.
- Sim. Neste momento, e foi por isso que precipitaram o teu regresso, já devem saber que tu tens a tua própria “bomba atómica”, com certeza, politicamente muito mais pesada do que a deles. Mas a bomba que possuis só produziria efeitos nefastos para o inimigo se tu não tivesses regressado ao campo de batalha. Ora, se lançarem primeiro a deles, a tua, mesmo sendo mais pesada, perde a novidade do estrondo. E a história que contares não passará da história da carochinha em banda desenhada – explicou pausadamente o magistrado.
- Queres dizer que toda esta patifaria que fizeram a Evita não vai ter um final feliz? – indignou-se Manuel.
- É provável que tenha. E torno a dizer: pertencemos à Ordem do Santo Oculto, para alguma coisa é! Mas não estou em condições para garantir seja o que for – concluiu o magistrado.