quarta-feira, abril 05, 2006

Padre Max e um crime sem castigo

É com imensa honra que reproduzimos, neste blog, o depoimento do nosso amigo Padre Mário de Oliveira - mais conhecido por Padre Mário da Lixa - na passagem do 30.º aniversário do assassinato do Padre Max, ocorrido em 2 de Abril de 1976. Este texto encontra-se transcrito no diário digital do seu autor.
Estamos perante duas figuras controversas da Igreja Católica, da escola de padres saídos do Vaticano II, tendo estes enveredado por um caminho mais radical e libertário. Concorde-se ou não com as suas ideias e práticas de vida por si traçadas, é com a devida vénia que transcrevemos o referido texto, tanto mais pelo facto de reconhecermos nestes dois homens, muito iguais entre si, verticalidade, coerência e honestidade intelectual.
O PREC já tinha terminado, em 25 de Novembro de 1975. Para uns, este período foi balbúrdia; para outros, uma permanente festa de rebeldia e utopia. Temos de respeitar as duas opiniões. Porém, a história de Portugal não deverá esquecer que pelo caminho há um crime sobre o qual ficou por fazer-se justiça.


O convite chegou-me dos promotores da sessão pública no Porto (Cooperativa Árvore), em Memória do Pe. Maximino e de Maria de Lurdes, assassinados à bomba há trinta anos. O convite só me foi formulado na passada 5.ª feira, 30 de Março e a sessão foi ontem, 1 de Abril, à noite. Mesmo assim, aceitei. Era o dia do almoço solidário com o Barracão de Cultura, mas, por mais que este se prolongasse pela tarde dentro, deveria dar tempo para eu poder ir ao Porto, partilhar de viva voz o meu indignado e desassombrado testemunho pessoal. Um testemunho com Sopro, como convém nestas iniciativas, pois só onde o Sopro de Jesus acontecer é que há verdadeiramente Evangelho ou Boa Notícia de Deus aos pobres, às vítimas e má notícia aos seus opressores e fabricadores. Por pouco não chegava a tempo. O convívio cultural e espiritual no pós-almoço foi tão intenso e tão único e tão cheio do Sopro de Jesus libertador, que nem demos pelas horas a passar. Tive que ir a correr para o Porto, por auto-estrada, para poder chegar a horas. Valeu a pena esta entrega à vida e às causas da vida. No final do dia, estava exausto, mas incrivelmente feliz. Na sessão, fui encontrar na mesa de intervenientes, onde também tive que me sentar, o meu querido Amigo e companheiro Mário Brochado Coelho, que já não via há bastante tempo, ainda que sempre esteja em comunhão viva com ele e ele comigo. O Jornal Fraternizar que ele recebe, desde o princípio, faz a ponte entre nós e alimenta a relação fraterna que nos faz ser mais humanos. O meu último livro, Na companhia de Jesus e de Ateus, também foi adquirido por ele e digerido. O que nos torna cada vez mais irmãos no Espírito e nas Causas. Fiquei edificado com a sua intervenção na sessão, feita logo a seguir à minha. E pedi-lhe, à despedida, que não deixasse de escrever tudo o que sabe (e muito é!) sobre o Padre Maximino e o processo judicial. O país precisa de saber o que anda por aí de desonestidade intelectual e moral, de cobardia e de crime encapotado. A morte do Pe. Maximino é um sinal de contradição que veio revelar o podre de muitos corações e monstruoso de muitas vidas aparentemente normais. Partilho, a seguir, na íntegra, as palavras que preparei para a dizer na sessão. Deixem-se tocar por elas, sobretudo, pela força libertadora do Sopro que as atravessa. Eis.

1. Foi já há 30 anos que os mataram à bomba, ao Pe. Maximino e à estudante Maria de Lurdes que vinha com ele das aulas que ambos davam à noite a trabalhadores na Cumieira, nas proximidades de Vila Real. Mas o crime continua aí em carne viva. E a clamar por justiça.

2. Não escutar semelhante clamor que se levanta do chão de Portugal e daqueles dois corpos jovens destroçados pela bomba é um outro crime não menos hediondo que o de há 30 anos. Ora, um país cuja História seja tecida de crimes e de sangue de vítimas inocentes que clamam, em vão, por justiça será sempre um país sem remissão, sem dignidade, sem humanidade, mais pesadelo do que comunhão. E tal tem sido o nosso país, apesar de Abril, um Portugal de pequeninos e de chico-espertos a caminho da cauda da Europa, um país de consumidores compulsivos de novelas e de futebol e de Religiões, cada qual a mais esotérica e exploradora, um país de apostadores compulsivos nos jogos da santa casa (quando a casa mãe de todos os jogos a dinheiro é santa, porque não há-de ser santo, e santo subito, o fatimista papa João Paulo II, cujo longo pontificado não deixou pedra sobre pedra do promissor e revolucionário Concílio Vaticano II?)

3. O pior é que quando não nos atrevemos a ser e a viver como seres humanos, depressa ultrapassamos as bestas em inumanidade e em crueldade. Por mais que nos enfeitemos de beatos e de santos, e de outros títulos secularizados cheios de pompa e de circunstância. Aliás, os títulos só assentam bem em quem tem montes de inumanidade a esconder e mãos cheias de sangue a disfarçar. Aos seres humanos com espinha dorsal e frontalidade, os títulos só atrapalham e depressa ficam pelo caminho, com os seus portadores a ser excomungados e votados ao ostracismo. É assim: Ou somos irmãos e companheiros e comportamo-nos como tal todos os dias, ou constituímo-nos em inimigos dos demais. Quem não se faz próximo dos que sofrem e estão para aí votados ao ostracismo torna-se um aborto humano. Pode não matar, não roubar, nem destruir, mas dele não se poderá dizer que é um ser humano integral. Ser mulher, ser homem a valer é comprometer-se com os demais, até que todos sejamos gente. Não se trata de subir, de fazer carreira dentro do Sistema e desta Ordem Mundial intrinsecamente perversos. Trata-se de descer para se chegar a ser. Quando nos promovem e, assim, nos distanciam dos últimos e das vítimas, despromovem-nos em humanidade. A melhor receita para fazer um canalha é promovê-lo a chefe do bando e atafulhá-lo de privilégios e outras benesses. Na Igreja, é fazer de um cristão bispo. Na Sociedade é fazer de um político ministro. Na empresa, é fazer de um trabalhador patrão. Com o passar dos dias, veremos diminuir o ser humano e desenvolver-se um monstro, cada vez mais distante e arrogante na sua relação com os da base e todo mesuras e salamaleque na sua relação com os do vértice da pirâmide que são também os donos de D. Dinheiro.

4. A menos que sejamos como o nosso querido Maximino mártir. Padre, mas com uma salutar prática quotidiana de anti-padre. Padre, mas com coração e braços e cabeça e mãos e pés e corpo de irmão e de companheiro. Escandalosamente próximo das pessoas da base e longe dos templos e dos altares. Sobretudo, longe dos privilégios que a batina e a estola sempre dão a quem se apresenta vestido/disfarçado com uma e com outra. Com ele, aprendemos que podemos assumir serviços, nunca privilégios. Os privilégios corrompem e acabam por fazer desaparecer o ser humano. Ou recusamos os privilégios que o Poder faz questão de conferir a quem exerce determinada função, ou tornamo-nos progressivamente menos humanos. Por isso, quando não nos deixam recusar os privilégios inerentes à função, só nos resta recusar a função. Se a aceitamos, assinamos nesse instante, o nosso próprio processo de despromoção de ser humano, para nos tornarmos progressivamente um funcionário do Sistema e do Dinheiro mais ou menos subserviente.

5. Na sua rebeldia e juventude, o Padre Maximino nunca se deixou enrolar. O seu jeito de ser padre era o seu jeito de ser homem. Como um menino. Atrevido. Indomável. Alegre. Gaiato. Solidário. Desprendido. Pobre. Comprometido. Insubornável. Dissidente. No Sistema, mas sem ser do Sistema. No Sistema, mas para o fazer implodir, nunca para se aproveitar dele. Um padre-para-os-demais. Para que os demais crescessem como pessoas, como seres humanos, em toda a sua originalidade e em toda a sua graça e verdade.

6. Não lhe perdoaram semelhante ser e viver. Tentaram domesticá-lo. Funcionalizá-lo. Clericalizá-lo. Em vão. Onde ele estivesse, estava o Sopro, o Vento, o Espírito. Ainda hoje, trinta anos depois, o seu nome continua a ser maldito. Como Jesus, o de Nazaré (não se iludam. O que hoje é por aí o mais bendito de todos os nomes não é Jesus o de Nazaré crucificado pelo Império e pelo Templo do seu país; é um Jesus light, habilmente reciclado pelo Império de Roma e pela Igreja católica romana que lhe sucedeu). Aliás, a morte violenta com que executaram o Pe. Maximino deixou bem claro urbi et orbi que padres assim nunca mais. A sua curta mas intensa vida histórica deveria ser bênção, exemplo a seguir, alfobre. E é maldição, vergonha, terreno maninho. Os bispos e a Igreja institucional tiveram e têm nojo dele. Nenhum deles apareceu a dar a cara no seu funeral. E hoje, trinta anos depois, continuam aí todos a ter vergonha de pronunciar o seu nome. É como se ele nunca tivesse existido.

7. E, no entanto, é de homens e de mulheres como o pe. Maximino que o nosso mundo precisa. Padres (e homens/mulheres) misseiros e funcionários do religioso, sempre tivemos que bastasse, séculos e séculos. E bispos também. E papas. Hoje, são menos em número, pelo menos os padres (ainda não há crise de vocações para bispo nem para papa!...), mas ainda são demais. Um só que seja e já é demais. Do que precisamos é de padres/presbíteros (homens/mulheres) que sejam seres humanos, irmãos e companheiros dos da base, pais com entranhas de mãe, com cabeça e mãos de parteira, que na relação com os demais ajudem a vir à luz o ser humano que anda em gestação em cada mulher, em cada homem que veio a este mundo. E que corre o risco de abortar e nunca chegar a vir à luz. Porque o Sistema da Alienação e da Mentira trabalha dia e noite, sem fins de semana e sem férias, para fazer abortar todos os que um dia nasceram neste mundo. O Sistema sabe que lá onde houver seres humanos a valer não há lugar para ele. Nem futuro! Por isso tudo faz para que nunca cheguem a ser seres humanos. Fiquem abortos, sempre.

8. Trinta anos depois do assassinato de Maria de Lurdes e do Pe. Maximino, a Igreja a que pertenço e a que eles pertenceram continua aí gritantemente calada. Envergonhada. Sem audácia para se rever no Pe. Maximino. Sem audácia para fazer dele o paradigma de padre/presbítero para o século XXI. Ainda em vida, atirou-o cruelmente para a valeta, quando foi por ele informada que iria fazer da Política (não do Poder!) a sua Intervenção e a sua Eucaristia. Em lugar de o apoiar e reforçar a comunhão fraterna com ele, abandonou-o às feras. Foi como dizer aos seus inimigos: podeis fazer com ele o que quiserdes, que nós não diremos uma palavra, nem esboçaremos um gesto. Ou, pior ainda: podeis cometer o hediondo crime de o matar pelas costas, à falsa fé, que nós jamais condenaremos esse crime. Pelo contrário, esse crime constituirá até um alívio. Para o país. E também para a Igreja institucional que nós, bispos católicos, somos.

9. O terreno ficou livre e a descoberto. E os inimigos do Pe. Maximino puderam avançar e matá-lo à vontade. Provavelmente, terão celebrado festivamente a sua morte. Pela calada. Numa liturgia inumana como eles. E com a bênção de algum cónego de nomeada e de algum bispo residencial. Não é verdade que também os sumos sacerdotes Anãs e Caifás, em Jerusalém, no tempo de Jesus, celebraram festivamente a sua morte violenta na cruz?

10. E agora? Trinta anos depois, tudo está consumado. Está? Não, não está! Tudo está apodrecido. Trinta anos depois, ele é corrupção por toda a banda. Ele é hipocrisia e mentira a jorros. Ele é Idolatria sem limites. O senhor D. Dinheiro não tem mãos a medir para atender tanta clientela. Como país, vamos a pique para o abismo, agora com Cavaco e Sócrates ao leme. Silenciaram os poetas e os profetas. Mataram o Debate. Nos seus medos da Liberdade e da Responsabilidade e na mais completa subserviência ao grande Capital (Às suas ordens, mau Capital, diz a manchete do último FRATERNIZAR!), esta dupla de dirigentes sem entranhas de humanidade tem o condão de tornar as almas das portuguesas, dos portugueses ainda mais pequenas. Até quando? Até quando nós consentirmos. Soprasse todos os dias em nós o Vento/Espírito que um dia fez acontecer e viver o Pe. Maximino e este país seria outro. Mas o que hoje sopra forte por aí é o Vento/Sopro de D. Dinheiro. Quem se atreve a resistir-lhe e a ser e a viver pobre até ao fim dos seus dias? Quem se atreve a ser ateu deste deus cruel que se alimenta de gente? Por mim, aqui estou, pobre, longe dos templos e dos altares, amigo, irmão e companheiro, no jeito do Pe. Maximino. Contem comigo para as novas clandestinidades que urge voltar a viver e para as novas conspirações que urge voltar a iniciar. Na companhia de Jesus e de ateus. E do Pe. Maximino e de Maria de Lurdes e de todos os outros mortos ressuscitados. Cuidem-se, porque os dias que vivemos são de chumbo. E é Inverno.